Pe. Jaldemir Vitório SJ
No âmbito do cristianismo aleatório, desconectado do Evangelho e avesso a seguir os passos de Jesus de Nazaré, que alertou os discípulos e discípulas: “aprendam de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29), há quem se orgulhe de ser “cristão conservador” (tradicionalista?). Pode-se falar em “católico conservador” ou “evangélico conservador”. Mas, não, “cristão conservador”. A pessoa é cristã ou é conservadora. As duas coisas são incompatíveis entre si.
Muito sumariamente se pode dizer que os conservadores vivem em função de instituições históricas que, no caso dos “conservadores cristãos” do Ocidente, corresponde às respectivas igrejas com suas estruturas hierárquicas, códigos morais e doutrinários, ritos litúrgicos, tradições religiosas etc. Embora o cristianismo tenha uma rica história de mais de dois milênios, somada a uma pluralidade de tradições e práticas, os conservadores tendem a fazer um recorte histórico, nos limites de suas mentalidades, interesses e ideologias, e a se fixarem num tempo determinado, com suas tradições, defendendo-as como imutáveis, por corresponderem ao querer de Deus, intocável per omnia saecula saeculorum. Consideram que, desde sempre, Deus quis assim. E quem ousa mudar o querer de Deus, como eles pensam, merece ser tratado como herege, infiel, inimigo da Igreja… inimigo de Deus. A excomunhão será o castigo exemplar para tais pessoas, execradas pelos fiéis conservadores, seguros de serem os defensores da verdadeira moral e dos bons costumes, enfim, da Igreja de Cristo.
Todavia, quem se der ao trabalho de ler com atenção as catequeses evangélicas canônicas, escolhidas pela Igreja Primitiva como referenciais para a formação dos discípulos e das discípulas do Mestre de Nazaré se dará conta de que o adjetivo conservador não lhe convém. Com a brevidade exigida por este texto, vejamos alguns indicadores de como Jesus mirava para frente, abrindo caminhos para a fé de seu povo, na contramão dos conservadores do seu tempo. Privilegiaremos o Evangelho segundo Mateus, catequese muito usada pelas primeiras comunidades cristãs.
- Jesus estava focado no Reinado de Deus e orientava os discípulos a “buscarem, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça” (Mt 6,33). E os ensinou a pedir, na oração dirigida ao “Pai nosso”: “venha o teu Reino” (Mt 6,10a). O Reinado de Deus corresponde ao querer de Deus – “a tua vontade” – acontecendo “na terra como céu” (Mt 6,10b). O Mestre deixava-se guiar por essa espécie de utopia de um mundo fraterno, com respeito pela dignidade de todos e todas e cuidado com famintos, sedentos, migrantes, desnudos, doentes, encarcerados, enfim, os marginalizados (Mt 25,35-40). De forma alguma, estava fixado no passado, tampouco lhe interessava defender as instituições religiosas. Sua preocupação focava o presente e o futuro e lhe interessava criar uma nova humanidade que expressasse a “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26) inscrita no coração de cada ser humano.
- Um gesto questionador de Jesus de Nazaré consistiu em reinterpretar a Lei Mosaica, cumprida com enorme veneração, até em suas minúcias, por uma ala de um grupo religioso da época, conhecido, exatamente, pela adesão incondicional à tradição legal de Israel: os escribas e os fariseus. O catequista Mateus oferece um exemplo de como o Mestre se confrontava, de maneira livre e criativa, com os imperativos da Torá, tomando alguns dos mandamentos do Decálogo (Mt 5,21-48). E o faz em forma de contraposição: “vocês ouviram o que foi dito aos antigos… Eu, porém, lhes digo”. Em alguns casos, Jesus oferece uma maneira nova de entendê-los (v. 22.28-30); em outros, diz que não têm cabimento para o discípulo do Reino (v. 34-37); outros podem ser praticados com espírito profético para desarmar os malvados (v. 39-42); outros são relidos no sentido contrário do que a Lei diz (v. 44-47). Não lhe interessava conservar a Lei Mosaica petrificada; antes, ensinava aos discípulos a entenderem-na de maneira dinâmica, de modo a ser repensada com sempre maior profundidade, como a possibilidade de se “cometer adultério no coração”, de “oferecer a outra face ao malvado”, de “amar o inimigo e os perseguidores”.
- Jesus de Nazaré deu um passo importante, em termos teológicos, ao inaugurar uma maneira nova e original de falar de Deus, chamando-o de Pai, e de se sentir Filho, numa relação de obediência e de filialidade, até à morte. Em duas ocasiões, a catequese de Mateus fala de Deus referindo-se a Jesus como Filho. Por ocasião do batismo, “uma voz vinda dos céus dizia: ‘Este é o meu Filho amado, em quem eu me agrado’” (Mt 3,17). A declaração reaparecerá na transfiguração: “uma voz que saía da nuvem disse: ‘Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo, ouvi-o sempre’” (Mt 17,5). A maneira como Jesus se sentia vinculado filialmente ao Pai dos Céus era algo inaudito na tradição teológica de Israel. Nenhum dos grandes profetas de outrora tivera tal pretensão! Na condição de Filho, Jesus realizava as obras do Pai dos Céus, como no caso do homem com a mão atrofiada, num dia sagrado (o sábado) e num local sagrado (a sinagoga). Isso causou uma perturbação tão grande nos que presenciavam, a ponto de os fariseus saírem dali e tramarem contra ele, sobre como o matariam (Mt 12,9-14). A teologia de Jesus implodiu a teologia de seus implacáveis perseguidores!
- Os escribas e os fariseus, defensores da religião, faziam um cavalo de batalha pelo modo como Jesus transgredia as prescrições referentes à pureza ritual (Mt 15,1-20). Ficavam ouriçados quando Jesus com seus discípulos “violava a tradição dos antigos”, por exemplo, comendo sem lavar as mãos (Mt 15,2). Jesus cuida de desmascarar a hipocrisia embutida na falsa religião deles. E o faz mostrando como se serviam da Lei para burlar a própria Lei. Como tinham o direito de consagrar coisas a Deus (lei do korban), faziam-no, exatamente, com o que deveriam dar a seus pais, de modo a serem desresponsabilizados de cumprir o mandamento de “honrar pai e mãe” (Ex 20,12; Dt 5,16). Jesus os denuncia: “vocês invalidam a Palavra de Deus, por causa da vossa tradição” (Mt 15,6). Jesus vai além, ao declarar que a verdadeira impureza procede do coração e não da boca, pois “do coração vêm más intenções, assassinatos, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e blasfêmias; são essas coisas que tornam a pessoa impura, mas comer sem lavar as mãos não torna impura a pessoa” (Mt 15,19-20). Portanto, o Mestre pensa a Lei da pureza ritual de maneira mais profunda e comprometedora do que os conservadores.
- O sábado é um dos pilares da religião de Israel. O descanso semanal evoca a obra da Criação, em cujo término “Deus descansou de todo o trabalho que tinha feito como Criador” (Gn 2,3). Guardá-lo é como se, ao longo da semana, o ser humano se assemelhasse a Deus, na sequência dos dias da Criação, e, no sétimo dia, também, repousasse. Jesus guardava o sábado, porém, com discernimento! Na eventualidade de se deparar com uma pessoa carente, a lei da misericórdia prevalecia sobre a lei do descanso sabático. Por isso, não censurou os discípulos que arrancavam e comiam espigas, em dia de sábado, para matar a fome (Mt 12,1-8) e curou o homem com a mão paralisada, mesmo sendo sábado (Mt 12,9-14). Os fariseus se escandalizavam por Jesus deixar os discípulos “fazerem o que não é permitido fazer em dia de sábado” (Mt 12,2). Entretanto, o Mestre se pautava por um dito do profeta Oseias: “quero misericórdia e não sacrifício” (Os 6,6), duplamente referido na catequese mateana (Mt 9,13; 12,7). Em outras palavras, “o Pai se alegra por ver-me fazer o bem e não porque me submeto à multidão de regras e normas que vocês dizem ser de origem divina! A religião de vocês não me serve”.
Em momento algum das catequeses evangélicas, Jesus se apresenta como judeu conservador, no sentido de absolutizar e petrificar a tradição dos antigos e transformá-la numa espécie de instituição à qual deveria se conformar, sem espírito crítico e à margem da misericórdia. Os cinco tópicos acima poderiam ser acrescidos, já que, ao longo de todo seu ministério, o Mestre de Nazaré, com os olhos fixos no Reino de Deus e como Filho fiel e obediente, pautou-se inteiramente pelo querer do Pai do Céus, de modo a relativizar as instituições religiosas de seu povo, sem qualquer intenção de considerá-las imutáveis e intocáveis.
Portanto, quem se deparar com um “cristão conservador” esteja atento. Será grande a probabilidade de estar diante de um “lobo disfarçado em ovelha”, um “falso profeta”, que será “reconhecido por seus frutos” (Mt 7,15-20). Com certeza, se dá o direito de declarar, com a boca cheia, sua condição de cristão, esquecendo-se da obrigação de se colocar, humildemente, na escola do Mestre de Nazaré, e aprender a tirar “do tesouro [da fé] coisas novas e velhas” (Mt 13,52); não apenas as velhas.
Pe. Jaldemir Vitório SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Divulgação IMDb