Cristianismo aleatório: muita influência, pouco evangelho

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Pe. Jaldemir Vitório SJ

Recente pregação equivocada, no Dia Internacional da Mulher, baseada em interpretação fundamentalista e superficial da Bíblia, deu o que falar. Alguém que se comporta como parâmetro da fé e se coloca acima de qualquer instância crítica e reguladora, atribuiu-se o direito de afirmar como desígnio divino algo contrário à mensagem do texto bíblico. A exegese apressada de Gn 1,18 não levou em conta o v. 23, quando adam declara: “esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne!” E a fala do narrador, no v. 24: “por isso, o  ish [homem] deixará seu pai e sua mãe, para se unir à sua ishah [mulher] e se tornarão um só basar [carne]”. No original hebraico, o nome mulher – ishah – é simplesmente o feminino do vocábulo ish [homem]. Quanto à antropologia bíblica, não consta que Deus criou o basar [carne] de primeira, correspondente aos homens, e o basar de segunda, aquele das mulheres.

Em nenhum texto evangélico, Jesus de Nazaré coloca os homens num patamar superior ao das mulheres. Mc 15,40-41 faz uma lista de mulheres-discípulas “e muitas outras” fiéis ao Mestre crucificado, quando os discípulos o haviam abandonado. Elas foram as primeiras apóstolas, anunciadoras da ressurreição – “vão depressa dizer aos discípulos: ‘Ele ressuscitou dos mortos e caminha à frente de vocês para a Galileia’” (Mt 28,7). Elas “contaram tudo isso aos apóstolos” (Lc 24,10). Maria Madalena foi a primeira pessoa a se encontrar e conversar com o Ressuscitado (Jo 20,11-18). O apóstolo Paulo declara de maneira enfática: “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Em Mt 23,8, Jesus ensina: “vocês são todos irmãos [e irmãs]”. Existem estudos abalizados de antropologia bíblica, à mão de qualquer católico honesto, preocupado com a verdade. Vale a pena conferir o excelente estudo da Pontifícia Comissão Bíblica, traduzido ao português com o título: O que é o homem? – Um itinerário de antropologia bíblica, publicado em 2022, por CNBB-Paulinas. Um pouco de esforço seria suficiente para se evitar a propagação de fake news bíblico-teológicas, em prejuízo da fé do Povo de Deus.

Certos influencers católicos, com milhões de seguidores, por seu comportamento no mundo digital, passam a impressão de pouco se importarem com a verdade da fé. Suas influências, de imensa repercussão, estão a serviço de ideologias com verniz cristão, à margem de Jesus de Nazaré, cuja sabedoria foi substituída por devocionalismos; cuja ética, tão bem apresentada no Sermão da Montanha (Mt 5–7), cedeu lugar aos moralismos impertinentes e aos legalismos farisaicos impostos a pessoas incautas; cuja teologia, que fala do Deus misericordioso (Lc 6,36), passou a se preocupar com dogmas e doutrinas irrelevantes e não com a santa vontade de Deus (Mt 6,10) e a girar em torno das imposições de indivíduos narcísicos, “todo-poderosos”, milionários pela monetarização de seus canais, autorreferenciados por se colocarem acima de qualquer instância que os possa questionar. Eis porque se sentem autorizados a ensinar, sem qualquer escrúpulo, aberrações teológicas contrárias ao evangelho e arregimentar legiões de apoiadores que, desprovidos de senso crítico, põem-se a defendê-los como “autênticos católicos”, “católicos de verdade”, “católicos de Maria”, “guardiões da milenar tradição católica”, a ser salvaguardada a ferro e fogo, mesmo em detrimento da verdade e …. do bom senso!

O fenômeno do falso profetismo apareceu, muito cedo, no ambiente cristão. Por volta dos anos 80 d.C., o catequista Mateus alertava sua comunidade: “cuidado com os falsos profetas! Eles se aproximarão de vocês disfarçados de ovelhas, mas, por dentro, são lobos ferozes” (Mt 7,15). E dava um critério de discernimento para reconhecê-los: “é pelo fruto que se conhece a árvore” (Mt 12,33). Com tal parâmetro, será possível passar pelo crivo evangélico os influencers que, com sua imponderável capacidade de insuflar um cristianismo aleatório na cabeça de católicos malformados, não passaram por uma autêntica iniciação cristã, nos moldes do cristianismo primitivo. Os católicos sem discernimento evangélico são levados a acreditar em qualquer indivíduo (até bispos!) ou canal da internet que se declara católico e se dá o direito de pontificar sobre temas de fé e de moral, com autoridade incontestável. Eles são a verdade!

A falsidade cristã desses influencers católicos se revela de distintas maneiras. A principal consiste em evitar os temas propriamente evangélicos como o Reino (Reinado) de Deus que acontece, na história, pelo viés da compaixão misericordiosa, do cuidado com os empobrecidos e os deserdados deste mundo, pelo enfrentamento da injustiça, da violência e da cultura de morte, pela superação das desigualdades e pelo cuidado com a casa comum, pauta obrigatória em nossos tempos. São inimigos da cruz de Cristo (Fl 1,18). No entanto, se distinguem por serem propagadores de devocionalismo alienante e liturgismo vazio, insistirem em pautas morais individualistas, descoladas dos grandes dramas da humanidade, agregarem ao seu redor, cooptando para suas redes sociais, um exército de pessoas incapazes de pensar criticamente que se prestam a transformá-los em gurus midiáticos, mestres infalíveis e insuspeitáveis, que passam a ocupar o lugar de Deus e de seu Santo Espírito.

Daí os frutos previsíveis de fanatismo sectário e divisão; espiritualidade alienada e alienante; disseminação de notícias falsas, transformadas em verdade; falta de respeito pelo outro que, quando se torna alvo de sua ira persecutória, sofre desavergonhadas calúnias e difamações; conluio com forças políticas abomináveis, em detrimento dos direitos humanos, mormente, os dos mais pobres. Chama a atenção a capacidade de se tornarem juízes implacáveis de quem não pensa como eles, olvidando a recomendação de Jesus, tão bem formulada em Mt 7,1-5. Para desmoralizar e desacreditar o irmão católico (até o Papa!), carimbam-no com a pecha de “comunista”, “teólogo da libertação”, “herege”, como se fosse a pá de cal para enterrá-lo, mais uma vez, à revelia do Mestre de Nazaré que nos deixou a chamada “regra de ouro”: “façam aos outros o mesmo que vocês desejam que eles façam a vocês. Essa é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12).

Em meio a muita influência e pouco evangelho e para superar o cristianismo aleatório que se disseminou entre nós, só existe um caminho: voltar ao Jesus de Nazaré das catequeses evangélicas, às fontes da fé. E, assim, redefinir as pautas do discipulado cristão, nos tempos conturbados que vivemos, quando a pessoa de Jesus foi reduzida à logomarca gospel e os que se dizem cristãos não o têm mais como referência real, em seu pensar e seu agir. O “vale tudo cristão” precisa ser definitivamente superado e abolido se, deveras, pretendemos ser fiéis ao Jesus de nossa fé e do nosso batismo e almejamos ver seu projeto de Reino fermentar nossa história.

Pe. Jaldemir Vitório SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

Foto: Shutterstock

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