Pe. Jaldemir Vitório SJ
Um passeio atento pelo mundo digital permite detectar o fenômeno do cristianismo aleatório, presente em incontáveis sites e canais alimentados por influencers que se declaram cristãos e se dão o direito de pontificar em temas de cristianismo e de igrejas cristãs. O número de seguidores e de visualizações de suas produções chama a atenção pela quantidade hiperbólica, adentrando a casa dos milhões, quiçá dos bilhões. Em geral, são pessoas que se dão autoridade, à margem de qualquer instituição ou controle externo, a não ser o exercido no âmbito digital, pelos apoiadores ou pelos críticos, a serem levados em conta, com o intento de manter vivos seus canais, com os olhos na monetarização, que lhes garante polpudos aportes financeiros. Em sua grande maioria, trata-se de lobos em pele de ovelhas, como alerta o Evangelho segundo Mateus 7,15.
Embora se denominem cristãos, choca a ausência de Jesus de Nazaré e seu projeto de Reino de Deus na “pregação” dos falsos profetas, que se mostram extremamente críticos ao julgar, sem piedade, o próximo, desconhecendo a exigência evangélica de autocrítica (Mt 7,1-5) e se recusando a “salvar a proposição do próximo”, como ensina Santo Inácio de Loyola. Limitando-me ao campo católico, penso nos sites “especializados” em criticar o Papa Francisco, reduzindo-o à categoria de herege, comunista e excomungado, por cuja morte imploram aos céus. Ou, então, os que centram sua artilharia na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pregando o boicote de suas iniciativas, como as Campanhas da Fraternidade, e denunciando desvios doutrinários em seus documentos, sem uma análise honesta e criteriosa. Existe um site obsessionado pelo Arcebispo de Aparecida-SP, cujas homilias são escrupulosamente analisadas, na certeza de conterem algum absurdo teológico ou pastoral a ser veementemente denunciado, em defesa da fé e da tradição. Outros influencers estão preocupados com desvios litúrgicos, declaram-se defensores ferrenhos da “verdadeira missa” [em latim!] e se tornaram caçadores de deslizes nas celebrações eucarísticas, denunciados como se fossem prenúncio do fim do mundo. Outros são focados em propagar devoções para todos os gostos, mas, também, moralismos, leituras destorcidas da Bíblia, doutrinas irrelevantes, práticas de piedade exóticas, autoajuda, revelações divinas a algum vidente, ensinamentos de santos e santas de tempos longínquos, desconhecidos e, no entanto, transformados em referência obrigatória para quem se diz católico. Esse rápido sobrevoo chama a atenção dos católicos que transitam pelo ambiente digital, convidando-os a tomarem pé no extenso catolicismo cibernético aleatório, pretensamente cristão, com suas faces e seus tentáculos.
Nossa conversa, aqui, se centra no adjetivo “aleatório”, aplicado ao substantivo “cristianismo”. Por que um largo tipo de cristianismo católico propalado nos ambientes digitais prima pela arbitrariedade? Como identificar que lhe falta objetividade? Onde se mostra desconectado do projeto de Jesus de Nazaré? Essa questão tem relevância, em face da ingenuidade e da falta de crítica da imensa maioria dos católicos para quem, basta um pregador se referir ao nome de Jesus, se apresentar como defensor da tradição e se declarar disposto a salvar a Igreja da ruína, para ser ouvido e acolhido como se fora um guru, cujas palavras se tornam infalíveis, acima e à margem do Papa, das instâncias eclesiásticas ou de quem quer que seja, até mesmo do bom-senso. Bastam-se a si mesmos e não se deixam interpelar! No final das contas, tornam-se arruinadores da Igreja, transformada num emaranhado de múltiplas seitas, de diversas dimensões, sem comunhão entre si.
O caráter aleatório desse cristianismo católico digital se deve ao fato de Jesus de Nazaré, o Evangelho e o compromisso com o Reino de Deus terem sido descartados ou reduzidos a detalhes irrelevantes, desprovidos de importância real. Em alguns contextos, tornaram-se a lucrativa logomarca gospel, onde se referir ao Jesus narrado nas catequeses evangélicas, especialmente, em se tratando dos pobres e dos marginalizados, implica o risco de ser considerado perigosa ideologia, da qual se deve distanciar.
Toda fala que se refira ao Jesus Cristo da fé exige ser submetida ao controle de qualidade evangélica. Isto é, torna-se obrigatório se perguntar se o Jesus das catequeses evangélicas daria o aval ao que se atribui a ele. Ou então, se os frutos daquele ensinamento ou pregação correspondem ao que Jesus espera de um discípulo ou uma discípula do Reino (Mt 7,17-20). Se tal doutrina encontra respaldo na tradição neotestamentária. Se determinado preceito moral se compatibiliza com a atitude de compaixão e misericórdia tão presentes nas palavras e nos feitos de Jesus de Nazaré. Passagem obrigatória nessa avaliação cristológica diz respeito aos pobres, marginalizados e toda sorte de excluídos, tanto pela sociedade quanto pela igreja. Eis como pode ser formulada a questão de fundo: qual a postura deste pregador-guru-influencer cristão no tocante aos preferidos de Jesus de Nazaré? Tem uma preocupação real com a sorte dos pobres? Seus seguidores são motivados a se empenharem na construção do mundo almejado por Jesus de Nazaré, com justiça e fraternidade? A pauta de uma nova sociedade, como presença do Reino de Deus fermentando a história, foi abraçada por ele? Que postura assume numa cultura onde imperam o egoísmo, o consumismo, o hedonismo, o narcisismo, o exibicionismo, a espetacularização? Em outras palavras, sabe assumir atitudes proféticas, nos passos de Jesus de Nazaré, na contramão da mundanidade, avessa ao querer de Deus?
Na catequese do evangelista Mateus, Jesus lança uma séria advertência: “nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim quem pratica a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Esse poderá ser um excelente critério para se identificar o cristianismo aleatório, presente, não apenas, no mundo digital, e sim, em qualquer lugar onde se invoca o nome de Jesus Cristo e se tem a ousadia de lhe referir certas verdades, como se fossem emanadas diretamente dele e gozassem de sua total aprovação. Assim como no Evangelho Jesus advertiu os discípulos contra o “fermento dos fariseus e dos saduceus” (Mt 16,6), para se precaverem, da mesma forma, alerta quem, com sinceridade de coração, deseja trilhar as sendas do discipulado do Reino, em nossos dias. Supera o cristianismo aleatório quem, hoje e sempre, se coloca na escola de Jesus e, a cada dia, se dispõe a aprender dele, que é “manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
Jaldemir Vitório SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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