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Cruz e ressurreição: apocalipses do mundo e da história

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Geraldo De Mori SJ “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20) Geraldo De Mori SJ Todos os anos os cristãos celebram, na “semana santa”, o grande “mistério da fé” que dá sentido e razão de ser às suas vidas: a morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. A liturgia do tríduo pascal, que começa na quinta-feira santa, com a instituição da Eucaristia, prossegue na sexta, com a cerimônia da Paixão, e desemboca no sábado, com a Vigília pascal, recorre a uma série de símbolos, que evocam questões fundamentais da existência: comida, necessária para viver, que remete à generosidade da terra, de onde ela vem, ao trabalho dos que a fizeram chegar às mesas, aos muitos desequilíbrios e injustiças associados à sua ausência ou privação, aos grandes momentos de socialização que se dão ao redor da mesa, dos mais cotidianos aos mais festivos e solenes; dor, sofrimento e morte, concentradas no instrumento por excelência do suplício de Jesus de Nazaré, a cruz, que, por sua vez, recorda a finitude humana, “pó que volta a ser pó” Gn 3,20), mas igualmente a “abominação da abominação” (Mt 24,15), que é a condenação e a morte do justo por excelência, lugar também da expressão de um dom de si que chega à total desapropriação, por amor ao reino de Deus e ao Deus do reino e que, por isso mesmo, se tornou “instrumento de propiciação por nossos pecados e os pecados do mundo inteiro” (1Jo 2,2); a vitória de Deus sobre as potências da morte, seu sim ao humilhado crucificado, conduzindo-o à uma plenitude única, expressa em sua ascensão ou em sua transformação no “nome que está acima de todo nome” (Ef 2,9), no novo Adão a indicar o sim de todas as promessas divinas, “no qual nós dizemos amém a Deus” (2Cor 1,20). É muito interessante, sobretudo nos relatos da paixão de Jesus dos evangelhos sinópticos, os discursos apocalípticos que ele profere diante do templo de Jerusalém (Mc 13,1-37; Mt 24,1-51; Lc 21 5-36), após seu ingresso “triunfal” na cidade santa, na qual depois será preso, julgado, condenado e crucificado. Após o anúncio da destruição do templo, que por sinal servirá de acusação contra ele diante do sinédrio, Jesus fala de sinais no céu, guerras, terremotos, pestes e fomes, da perseguição contra seus discípulos, do cerco de Jerusalém, de sinais no sol, na lua e nas estrelas, da angústia e do pavor que vão aterrorizar as nações, diante das desgraças que sobrevirão. Na descrição de Lucas, “as potências dos céus serão abaladas, e então eles virão o Filho do homem vir rodeado de uma nuvem na plenitude do poder e da glória” (Lc 21,27). O terror cede então lugar ao anúncio da esperança: “levantai a cabeça, pois a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28). A lógica que subjaz aos discursos sinópticos que anunciam a destruição do templo e o fim do mundo encontra-se também no livro do Apocalipse, repleto de sinais terríveis nos céus e na terra, anunciadores de um combate sem tréguas entre, de um lado, as forças do mal, simbolizadas pela besta e seus sequazes, que na verdade são representantes de Satanás, e do outro, o “Cordeiro imolado” (Ap 5,6), único capaz de “ler o livro” (Ap 5,5), de vencer o poder da besta (Ap 17,14). Na trama do livro, a vitória do Cordeiro e suas núpcias com a nova humanidade, figurada pela Jerusalém que desde do alto “preparada como uma esposa que se enfeitou para seu esposo” (Ap 21,2), apesar de definitiva, dá sempre lugar a uma espécie de ressurgimento do mal, até que, enfim, subjugado, possa irromper o “novo céu e a nova terra”, quando Deus vem fazer morada entre os seres humanos, habitando com eles, enxugando suas lágrimas, pois “não mais haverá morte, nem luto, nem clamor, nem sofrimento, pois o mundo antigo desapareceu” (Ap 21 3-4). É interessante ler os acontecimentos celebrados liturgicamente no tríduo pascal à luz da apocalíptica, pois esse “gênero literário” é responsável, na história da literatura, pela introdução, numa narrativa, da ideia de “fim”, enquanto “término” da trama que é narrada. Contudo, quando alguém recorre ao termo apocalipse, em geral o utiliza com o sentido de “catástrofe”, identificada com o “fim do mundo” ou com uma tragédia que destrói “um mundo”. Curiosamente, na tradução desse vocábulo grego para a língua inglesa, recorreu-se ao termo “revelação”. Na bíblia cristã, o livro que traz o nome de Apocalipse, é o último, aquele com o qual a “grande narrativa” da história de Deus com a humanidade chega ao seu término, corroborando a ideia de que o termo tem a ver com fim. Porém, há outros apocalipses na bíblia, como o de Daniel, os dos sinópticos, já evocados, certos trechos das cartas paulinas, a carta de Judas, e esses textos não estão no “fim da bíblia”. Que sentido então teria o termo apocalipse para pensar o tríduo pascal? Os três sentidos evocados acima ajudam a entender os acontecimentos pascais. De fato, a cruz põe fim não só à vida de Jesus, mas também àquilo que ele anunciou e viveu: a proximidade do reinado de Deus, o advento de um mundo curado de suas feridas, reconciliado de suas divisões e exorcizado das forças que o impediam de viver em harmonia, um mundo no qual todos são filhos e filhas, irmãos e irmãs. Com ela também chegam ao fim as expectativas que ele suscitou em quem o seguia, bem expressa pelos discípulos de Emaús: “nós esperávamos que ele seria o que devia libertar Israel” (Lc 24,21). O “fim” terrível da vida de Jesus, simbolizado na cruz, é também uma catástrofe, pois é a vitória do mal sobre o bem, da injustiça sobre a justiça, da violência sobre a paz. Mas desse “fim” e dessa “catástrofe” irrompeu o inusitado, tão radicalmente novo que só o “rasgar-se do véu” da incredulidade poderia tornar descoberto. Nesse sentido, a luz que brota do túmulo do Crucificado-Ressuscitado, só pode ser fruto de uma revelação. Algo tão novo acontece que, segundo uma das orações da missa da vigília pascal, ultrapassa o ato criador. Sem desfazer o acontecido na cruz, transforma o instrumento de suplício em lugar de salvação. Não se trata de canonizar a dor e o sofrimento, mas de perceber que o ato que levou Jesus à estrema entrega, é aquele que introduz a humanidade na nova criação. Nesse sentido, a cruz, mais que término e catástrofe é revelação. Como bem o expressou Paulo, o Crucificado é “poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,24). Por isso, o mesmo Apóstolo, em outro texto, vai contrapor a “multiplicação” do pecado ao “muito mais” da graça manifestada/revelada em Cristo Jesus nosso Senhor (Rm 5,20). Cruz e ressurreição, com seus símbolos, que tanto marcam as celebrações, o imaginário e muitos discursos cristãos, precisam, contudo, ser redescobertas no sentido sinalizado pela apocalíptica, ou seja, enquanto fim, catástrofe e revelação. Muitos “esvaziaram” a cruz de Cristo (1Cor 1,17), tornando-a um simples “fetiche”, objeto de devoção, que nem provoca “escândalo” e nem é vista mais como “loucura” (1Cor 1,23). Outros já não experimentam mais a “força da ressurreição” (Fl 3,10), vendo-a como mero “final feliz” de um Jesus que fingiu ser humano, esquecendo-se que é “vazia” a fé de quem ignora o sentido da ressurreição ou afirma que Cristo não ressuscitou (1Cor 15,14). Celebrar o tríduo pascal com mais de um ano de pandemia, em um momento em que o número de mortos no Brasil adquire cifras estratosféricas, pode ser uma ocasião propícia para redescobrir o significado mais profundo da cruz e da ressurreição enquanto apocalipses de nosso mundo e história. De fato, estamos em pleno “fim” de um mundo, como sinalizavam muitos críticos do modelo econômico insustentável que adotamos. Este fim é uma catástrofe e tem todas as cores e horrores descritos nos apocalipses bíblicos. Nos textos das Escrituras e no “mistério da fé” revelado pela cruz e ressurreição de Jesus, porém, o fim e a catástrofe devem fazer despontar algo novo, a nova criação, muito mais extraordinária do que a primeira. Temos olhos para ver o que está sendo gestado nesse tempo? Temos colaborado para o advento da “nova criação”, ou simplesmente vivemos como os antigos Coríntios: “comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1Cor 15,12)?   Geraldo Luiz De Mori é jesuíta, doutor em Teologia e professor da FAJE.  
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