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Cruz e ressurreição: pascalização e cristificação do mundo

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Geraldo De Mori SJ

Tudo está consumado” (Jo 19,30)

O evangelho de João, na narrativa da paixão, coloca na boca de Jesus a expressão “tudo está consumado” como sua última palavra antes de “entregar o espírito” (Jo 19,30). Como o conjunto desse evangelho possui uma simbólica que explora muitos recursos, tanto da tradição judaica quanto do conjunto das culturas, é importante trazer alguns dos elementos que subjazem a essa expressão, situando-a no contexto em que estamos vivendo.

A expressão “está consumado”, em grego “tetélestai”, remete a três ideias: a conclusão de um trabalho, a quitação de uma dívida, a posse de uma propriedade. No relato joanino, o termo pode significar que Jesus havia concluído a “obra” que o Pai lhe havia encomendado, que ele havia “pago” a dívida contraída pela humanidade ao pecar, e que ele podia tomar posse do novo mundo que se abria após tudo o que havia realizado. As ideias que perpassam esses três significados são as de “fim”, no sentido de conclusão, mas também de realização de um objetivo, e de plenitude. O sinal disso é que o “dom” esperado como “bem escatológico”, ou seja, o bem que se realizaria como pleno cumprimento de todas as promessas, é concedido: o último suspiro de Jesus é identificado com o dom do “Pneuma”, termo grego para falar do Espírito. O hálito vital do crucificado, exalado de seus pulmões pela última vez, é o dom que faz surgir o novo céu e a nova terra.

João gosta muito de tecer relações com os textos do judaísmo. Ele começa seu evangelho, por exemplo, com o mesmo termo grego que traduz o hebraico com o qual começa o primeiro livro da Bíblia: “no princípio”. No dom do Espírito, pode-se também evocar o primeiro ato criador, assim descrito por Gn 1,1-2: “No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia e o Espírito de Deus pairava sobre as águas”. Da cruz jorra o Espírito que introduz o mundo e a história da humanidade na nova criação.

Todas as culturas fazem alguma experiência do “sagrado”. Em geral, segundo os estudiosos, o sagrado é visto na ambivalência do que aterroriza ou fascina. Por isso, muitas culturas separam o sagrado do profano, o primeiro reservado à divindade, o segundo ao que é o dia-a-dia do comum dos mortais. Essa ambivalência, na Bíblia, deu origem ao que na exegese é a distinção entre “tempo” e “eternidade”, “chronos” e “kairos”. A eternidade ou o kairos é identificada com a experiência ou o tempo cheio de significado, geralmente correspondendo às “visitas” de Deus a seu povo, como libertador, salvador, sabedoria que ajuda a encontrar sentido em meio ao sem sentido. Essa experiência e esse tempo, possuem algo do “tetélestai” emanado da boca de Jesus na cruz, ou seja, são cheios de sentido, introduzem em uma plenitude, fazem parte do “eschaton”, ou seja, do “fim” para o qual a humanidade foi criada, identificado igualmente com o término de algo ruim, uma experiência de sofrimento, opressão, escravidão ou injustiça.

A palavra “escatologia” é derivada dessa compreensão de que um “kairos” interveio num determinado momento da história de Israel, e que os cristãos vão identificar como sendo um “kairos” para a humanidade. Todos os textos do Novo Testamento estão convencidos de que esse “kairos” é o próprio Jesus, sobretudo o que ele viveu na cruz, como sinal do “cumprimento” pleno da vocação para a qual a humanidade foi criada. Os exegetas fazem uma distinção entre escatologia, que aponta para o advento do “kairos” por excelência, e apocalíptica, gênero literário que se interessa pelos “sinais” do fim, visto como cumprimento e término, este último, muitas vezes identificado a uma catástrofe.

No relato joanino acima evocado, a expressão “tudo está consumado”, associada à afirmação de que Jesus “entregou o Espírito”, remete sem dúvida à convicção de que com sua morte Jesus introduz a humanidade num novo “tempo”, o de sua pascalização e cristificação. Por isso, em João a cruz de Jesus é tida não como sinal de sua derrota e fracasso, mas como símbolo do novo mundo que nela é inaugurado. O dom do Espírito está, portanto, associado ao processo que é gestado na “consumação” que se dá na cruz. Doravante, quem crê, conforme insiste de tantas maneiras o Jesus joanino, já venceu a morte, já entrou no mundo novo, já olha o mundo e a histórica com olhar transfigurado.

Num tempo em que a morte é banalizada, tomando proporções que, talvez, jamais imaginássemos que poderia alcançar, voltar-se para o Crucificado que, por sua fidelidade introduz o “kairos” do “fim” do mundo, pode ser sinal de esperança e de conversão. Esperança, porque em sua entrega o mais humano de nós estava sendo revelado. Conversão, porque não basta olhar para aquele que foi transpassado, mas é necessário ver, como tão bem expressa Is 54, o quarto cântico do Servo Sofredor, que são nossas culpas que ele carregou. Só seremos “curados” de nossa cegueira e da dureza de nosso coração se deixarmos que seu Espírito nos leve a viver a experiência do “tetélestai”. Trata-se, na verdade de pascalizar e cristificar o mundo, ou seja, de vencer em nós os gestos que introduzem no mundo a transgressão, a injustiça, o mal e o pecado. Somente assim estaremos realizando nosso trabalho, quitando nossa dívida, podendo então tomar posse definitiva do mundo novo que começa a ser gestado, e com o qual colaboramos.

Geraldo Luiz De Mori é jesuíta, doutor em Teologia e professor da FAJE.

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