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Da extrema humilhação à mais alta glorificação

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Geraldo De Mori SJ

“Por que procurais o Vivente entre os mortos?” (Lc 24,5)

A semana da oitava da páscoa de 2022 coincide, no Brasil, com duas datas comemorativas: 19 de abril, dia do “índio”; 21 de abril, dia da Inconfidência. Sob muitos pontos de vista, essas duas comemorações se prestam a uma aproximação com o que se celebra na páscoa: a vitória de Deus em benefício de um crucificado injustamente condenado, torturado e morto. Entre a humilhação da cruz da sexta-feira santa e a glorificação pascal do domingo da ressurreição, o caminho percorrido pelos discípulos e discípulas de Jesus de Nazaré foi longo. Os povos originários do país e o Alferes enforcado em 21 de abril de 1792, com todos os que se identificam com os anseios de liberdade que eles encarnam ainda hoje, podem provocar os seguidores e seguidoras do Crucificado-Ressuscitado a se colocarem no caminho que vai da ignomínia à glorificação.

Com efeito, para além de uma identificação formal com o cristianismo, vivida muitas vezes como algo privado, que concerne o indivíduo e sua salvação futura, a fé cristã é uma experiência vital, que implica aquele/a que crê em todos os âmbitos de sua existência, desde os valores pessoais até a convivência com as demais pessoas na sociedade e sua relação com o meio ambiente. Como expressaram vários autores do Novo Testamento, a fé no Crucificado-Ressuscitado é, para quem nele crê, uma “nova criação” (2Cor 5,17; Jo 3,7), que supõe uma luta constante e uma vitória frente à “velha criação”, que tem na morte seu mais forte “aguilhão”, sob o qual jaz o “pecado” (1Cor 15,55). Essa luta, que é toda a vida de quem acredita na vitória do Cristo, se expressa de muitas maneiras, com desdobramentos no âmbito individual e no modo de ver o mundo.

O “mistério pascal” é o coração mesmo da fé cristã. Nele está incluído o caminho que vai da sexta-feira da cruz ao domingo da ressurreição. E esse caminho pode ser visto como o da passagem da perda da fé ao despertar à fé. De fato, como diz um dos discípulos de Emaús, “Jesus Nazareno, homem profeta, poderoso em palavras e obras, diante de Deus e de todo o povo”, entregue à morte e crucificado, havia suscitado muita esperança (Lc 24, 19-21), mas, após tudo o que lhe acontecera nada mais restava a fazer a não ser voltar para a vida de antes, a iniquidade parecia sempre vencer sobre o justo. É interessante notar, não só nesse episódio, mas em todos os textos dos evangelhos que narram alguma “aparição” de Jesus, lidos na liturgia da semana da “oitava da páscoa”, por um lado, a “assinatura” da morte, associada ao túmulo e aos ritos que ele evoca, ou ao retorno à vida anterior ao encontro com o Nazareno; e, por outro, a “palavra” ou o “gesto” que desencadeia uma “revelação”, traduzida na maioria dos textos pelo termo “aparição”, que convida a receber um anúncio, a descobrir-se “visitado” por um sentido que os discípulos não podiam encontrar por si mesmos, pois era dom do Ressuscitado.

As liturgias de duas celebrações importantes do tríduo pascal expressam bem o caminho que vai da cruz à ressurreição. Na sexta-feira santa, após o momento de escuta do quarto cântico de Isaías (Is 52,13-53,12), da carta aos Hebreus (Hb 4,14-16; 5,7-9) e da narrativa da paixão segundo João (Jo 18,1-19,42), seguido do momento de uma grande oração universal, é proposta a cerimônia da “adoração” da cruz. A própria expressão soa paradoxal. Como adorar um instrumento de suplício, que, por outro lado, é a revelação do que há de mais abominável e perverso no ser humano, pois mostra que nesse instrumento foi morto um inocente? Certamente essa cerimônia só tem sentido depois que os “olhos da fé foram abertos” e os/as discípulos/as puderam ver, na cruz do humilhado, não só sua desfiguração: “homem coberto de dores, cheio de sofrimentos; passando por ele tapávamos o rosto; tão desprezível era, não fazíamos caso dele” (Is 53,3), e derrota deles mesmos enquanto seguidores/as, como a da humanidade inteira: “Ele foi ferido por nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes” (Is 53,5). A adoração do “instrumento da abominação”, que revela os efeitos dos crimes e sua raiz mais profunda, o pecado que leva à morte o inocente, não visa, porém, à culpabilização infinita, mas é um convite a descobrir, por trás da cruz, o dom de um perdão infinito, pois ela é expressão de um amor que se dá até o fim. Por isso, como Isaías já havia misteriosamente descoberto séculos antes: “suas feridas” são o “preço da nossa cura” (Is 53,5). Esse, então, é o sentido dessa cerimônia, presente na liturgia da sexta-feira santa.

Na outra celebração do tríduo pascal, a vigília do sábado santo, a liturgia inicia-se com a bênção do fogo. Em princípio, toda a assembleia é chamada a reunir-se ao redor do fogo. Antes, porém, que ele seja aceso, deve reinar a escuridão, que recorda a escuridão do nada que precedeu à criação, as trevas nas quais imergiu a humanidade com a escuridão que foi o próprio ato que levou à condenação do inocente. Aceso o fogo, dele é tirada a chama que acende o círio pascal, no qual toda a assembleia acende sua vela. Na simbólica da passagem das trevas à luz se encontra todo o caminho feito pelos discípulos entre o vazio que para eles representou a morte de Jesus e a plenitude que para eles foi o fato dede deixar-se ver após sua morte, vindo-lhes ao encontro, confirmando-os na fé e enviando-os a serem no mundo sinais da luz que vence as trevas.

Toda a vida cristã se condensa ao redor dessa passagem entre a sexta-feira santa e o domingo da ressurreição. Esse percurso, vivido sacramentalmente no batismo e nos demais sacramentos, como também na vida de oração, é chamado a tornar-se um “caminho novo e vivo” (Hb 10,20). De muitas maneiras isso vai se expressar na vida dos discípulos e discípulas do “Caminho” (At 22,4). A sexta-feira santa, com a imagem da cruz que se levanta e revela o que há de mais perverso e mais sublime no humano, a saber, seu pecado, mas também a capacidade de se dar até o fim por amor, é uma cruz cotidiana, como diz Jesus a quem o segue (Lc 9,22-25). Por isso mesmo, toda a aventura do ser cristão é saber distinguir em si o que há de perverso a ser convertido pelo que há de mais sublime. E esse caminho é algo a ser feito não só na existência pessoal, mas também na existência coletiva. Nesse sentido, comemorar no dia 19 de abril, o dia do índio e no dia 21, o dia da Inconfidência, é, enquanto povo brasileiro, um convite a se perguntar: até que ponto participamos do processo que crucifica os povos originários do país? Isso pode se dar diretamente, através das novas investidas de interesses espúrios com relação a seus territórios, mas também indiretamente, quando, por omissão ou covardia, como fizeram todos os discípulos na noite em que o Senhor foi entregue, fugimos. Algo parecido pode ser perguntado diante do evento da Inconfidência, que levou os inconfidentes a se rebelarem contra o processo colonial, almejando uma nação em que houvesse mais justiça e menos exploração. Até que ponto, enquanto seguidor/a do Caminho é possível compactuar com grupos e propostas que atentam contra os direitos humanos, insistentemente difundindo mentiras e alimentando a polarização, que, mais que à luz resplandecente da vitória da verdade sobre a mentira, da vida sobre a morte, quer manter o país nas trevas da ignorância de um sistema que cultua a morte?

Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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