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Da oração à conversação

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Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ

Darío Restrepo, no “Diccionario de Espiritualidad Ignaciana”(1) , escreveu um precioso verbete sobre a “conversação espiritual”. Trazemos aqui suas principais reflexões e as comentamos. Causa impressão a confiança que Inácio deposita na palavra para poder encontrar a Deus e como instrumento para ajudar aos próximos. “Conversar” é uma palavra complexa. Segundo Santo Inácio, pode significar a relação com alguém (conversar-tratar com) e/ou o falar com o outro (conversação-diálogo), dependendo do contexto (cf. Const. 89.196.729.637.814637, 802…). No século XVI não era usual empregar a palavra “diálogo”. O termo “falar” inaciano segue ordinariamente o sentido geral que se dá a ele na língua espanhola. Algumas poucas vezes Santo Inácio o toma como equivalente ao “conversar espiritualmente” (cf. Aut. 21.28.42.56.65-67, 70; Const. 157. 250.726; Diário Espiritual (DE) 15.53,54.63.69.74.77.95.113).

A experiência de Inácio em termos de conversação

A conversação de Inácio foi muito mais adquirida que inata; aprendida e moldada pacientemente mais que espontânea. Isso foi ainda mais notório referido à sua conversação espiritual; terá um como, um porquê e um para quê, “indo sempre buscar o que quero” (EE 76). Ele não falava por falar com palavras ociosas. Nas Constituições se dirá que em matéria de conversação espiritual, o essencial é sempre a unção que o Espírito Santo comunica para isso; mas, de nossa parte, algumas orientações podem ajudar a prevenir os inconvenientes e assegurar as vantagens para poder conversar “no Senhor”. Como em toda a doutrina inaciana, aqui também encontramos o segredo e a chave de Inácio na sua estreita união entre a graça de Deus e a colaboração humana, princípio e fundamento desta conversação. O que Inácio ensinava, ele o tomava de sua experiência, fonte de sabedoria.

Qual foi a experiência de Inácio em matéria de conversação espiritual? Qual a unção que recebeu do Espírito e quais as orientações que encontrou para colaborar com ela? No que se refere à sua espiritualidade, ele, como todos os espirituais, é devedor da Tradição dos Padres da Igreja. Mas não é menos certo também que em grande medida foi também um autodidata como se vê claramente no discernimento dos espíritos. Como não tinha quem o ensinasse nessas matérias entrou por graça divina na escola de Deus que o instruiu diretamente: “Neste tempo [de Manresa] Deus o tratava da mesma maneira que um mestre-escola trata uma criança, ensinando-lhe”(Aut 27).

Sob a guia do Espírito: da conversão à conversação

Durante o tempo de sua conversão em Loyola, Inácio parte, na matéria do conversar, da conversação com Deus e a partir dela passa à conversação com os homens. Sua longa convalescença e os intermináveis espaços de solidão em Loyola o levaram a conversar com ele do que passava no seu interior.
Uma autêntica conversação espiritual: o Relato do Peregrino (Autobiografia) [Aut. 1-37]
Ainda que cronologicamente é sua obra póstuma (1553-1555), podemos encontrar nela os inícios da conversação inaciana. Pela sua origem, os meios que empregou e a finalidade que pretendeu ao fazê-la, a Autobiografia não somente narra a história de sua conversação, mas ela mesma é uma autêntica conversação espiritual; nela, Inácio fala escolhendo cuidadosamente suas palavras e com a força que as inspira, Inácio comunica à experiência uma familiaridade com Deus, um Deus que está na raiz de todos os acontecimentos que vai relatando. Encontramos, inicialmente, uma longa gestação de seu mundo interior que vai se traduzindo, pouco a pouco, em palavras exteriores. Os livros da “Vida de Cristo” e da “Vida dos Santos” abrem nele um diálogo com Deus e consigo mesmo (cf. Aut. 1.12). As lembranças do mundo o levam também a um solilóquio referente à dama dos seus pensamentos. Nestes balbucios do discernimento aparecem dois novos interlocutores em sua conversação interior: Deus e o demônio. A partir desse momento se estabelece uma interrelação entre sua intimidade e sua expressividade, entre sua vida interior e sua conversação. Suas palavras ressoarão as vibrações de seu espírito. Sem estudarmos a sua evolução interior, a conversação espiritual de Inácio resulta incompreensível ou a sua compreensão será inadequada. Nesse tempo, seus familiares tentarão dissuadi-lo da mudança que já notavam nele. Inácio anota: “Ele, não cuidando de nada […], o tempo que conversava com os de casa o gastava em coisas de Deus, como o qual fazia proveito em suas almas” (Aut. 11). A sua peregrinação à Terra Santa e suas múltiplas viagens marcarão a necessidade de uma grande adaptabilidade de sua conversação segundo pessoas, tempos e lugares.

Os Exercícios Espirituais, um manual para conversar com Deus e com os homens

“Ouvir o que falam as pessoas […] como falam umas com as outras […] e refletir depois para tirar algum proveito de suas palavras” (EE 107). O “como falam” concentra a nossa atenção. Este texto está tomado precisamente da contemplação da Encarnação do Verbo, a Palavra do Pai. Inácio aprendeu do Verbo, em Manresa, usar a palavra com verdade e caridade discreta, como mensagem para os próximos. Inácio escreveu o seu livro dos Exercícios como um diálogo em várias direções: “daquele que dá os Exercícios” com Inácio através do seu texto; do “que dá os Exercícios” com “o que os recebe”; deste com Deus; de Deus com o exercitante. Por isso a palavra está no centro do texto: a de Deus, e baseado nela e na palavra dos Exercícios, a do exercitante e a de seu acompanhante. Pedro Fabro chamava “conversações em Exercícios” à realização desta experiência para exercitar-se espiritualmente (cf. Aut. 17.21 ss). Como todo manual, necessita uma explicação e uma adaptação: se dão e se recebem. Não é um livro para ser lido, mas são exercícios para serem vividos em diálogo, são um tipo específico de conversação espiritual em que se dá ao outro “modo e ordem” para proceder. Requerem uma essencial adaptação pessoal àquele que os recebe e, por isso, implicam uma conversação que vai desde o mais concreto e temporal (a comida, o sono etc.) até o mais espiritual e decisivo: a vontade de Deus.

O Pressuposto (EE 22), condição sem a qual não pode existir um diálogo autêntico, marca o ponto de partida sem que possa afetar o exercitante nenhum preconceito negativo diante daquele que dá os Exercícios.

As Anotações, colocadas ao início do livrinho, são as regras de como conversar nos Exercícios. A anotação 15 assinala a regra de ouro da conversação inaciana: ˜saber conversar de tal maneira com os homens de modo que estes possam chegar ao diálogo direto com Deus”. Saber levar o próximo a Deus sem interferir no seu trato com ele. Por isso, Inácio pede ao exercitante, nesta experiência espiritual à qual ele se exercita, uma “conversão à palavra”, prévia à “conversão à pessoa˜. Primeiro fará a pessoa passar por um “exame geral da palavra”(juramento vão, palavra ociosa, infamante, de murmuração) e por um processo de purificação da escravidão do pecado (erro, desordem, desintegração).

Inácio toma a palavra a sério, sobretudo a palavra de Deus, e exige que esta palavra seja utilizada com verdade, necessidade e reverência (EE 38). Em seguida, confrontará esta palavra enquanto imitação de outra, com seu modelo original, a Palavra encarnada. Buscará sua integração (ordem) no Verbo que precede, ensina, interpela e espera uma resposta que não será mais do que um eco desta Palavra eterna. Para isso faz orar com o significado de cada palavra (EE 249ss). Finalmente, esta palavra-eco, iluminada e libertada através de um silêncio doloroso e eloquente, proclamará a boa nova do Senhor que volta na glória. Podemos notar que Inácio tira sua forma de conversar de seus modos de orar e vice-versa, pois se dá uma estreita interrelação, própria do contemplativo na ação. ˜Ver a Deus em todas as coisas: também na palavra verdadeira, necessária e reverente”(EE 38-39).

PARA REFLETIR:

– Como podemos crescer no conversar espiritualmente?
– Temos tratado a Palavra de Deus com reverência, atenção devida e profundidade?

1- Darío Restrepo, “Conversación”, em: GEI, Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, Santander/Bilbao: Mensajero/Sal Terrae 2007, 472-481.

Pe. Alfredo Sampaio Costa é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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