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“Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16): de que maneira?

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Pe. Jaldemir Vitório, SJ

A Campanha da Fraternidade deste ano confronta-nos com o tema Fraternidade e Fome, e o lema: “Dai-lhes vós mesmos de comer!”, tirado do evangelho de Mateus. Por estarmos acostumados a chamar de multiplicação dos pães a perícope em que Mt 14,16 está inserido, pensamos, de imediato, no aspecto miraculoso do gesto de Jesus de Nazaré. E nos perguntamos como foi possível alimentar uma multidão com cinco pães e dois peixes. Apelando para o poder taumatúrgico do Mestre, damos por resolvida a questão. A multiplicação dos pães foi possível porque Jesus é o Filho de Deus todo poderoso!

Entretanto, Mt 14,13-21 integra uma longa catequese narrativa, o evangelho de Mateus com seus 28 capítulos, na qual o evangelista, recorrendo às tradições sobre como Jesus de Nazaré orienta sua comunidade a respeito de uma série de problemas com os quais se defrontava. Entre eles, um era premente: como sobreviver socioeconomicamente num contexto de extrema dificuldade, devido à opção pelo discipulado cristão, com o estilo de vida que lhe era peculiar. Optar pelo discipulado do Reino significava romper com as estruturas de apoio, capazes de suprir suas carências, em caso de necessidade. A primeira dizia respeito à sinagoga, ligada à tradição judaica, com a qual a comunidade de Mateus estava em litígio. Seus membros, cuja maioria provinha do judaísmo, eram pressionados a romper com Jesus e as comunidades dos discípulos e das discípulas, e se submeterem às determinações dos líderes da sinagoga, em fase de reestruturar o judaísmo, após a destruição do Templo de Jerusalém, pelos romanos, em 70 d.C. Caso insistissem na opção pelo discipulado de Jesus, não contariam mais com a assistência social oferecida pela estrutura sinagogal. A segunda estrutura correspondia à ajuda oferecida pelos romanos a quem vivia em seu território. O foco principal da crise vivida pelos discípulos de Jesus, no âmbito do Império Romano, referia-se à pretensão do imperador de ser adorado como deus, coisa impensável para quem aderiu ao Reino de Deus e se recusava a qualquer forma de idolatria. Colocar-se na contramão do Império exigia enorme coragem, pelo risco de ser marginalizado e, em situações extremas, perder a vida.

A perícope evangélica conhecida como multiplicação dos pães contém a orientação que o evangelista dá à sua comunidade, recorrendo ao ministério de Jesus, para enfrentar o problema da insegurança socioeconômica. Ele está convencido de que o caminho da solidariedade e da partilha será o único capaz de garantir a sobrevida de seu grupo.  Sua mensagem está presente nas entrelinhas de Mt 14,13-21. Aí se fala duas vezes em “deserto” para aludir ao deserto existencial em que se encontravam os membros da comunidade, por terem aderido ao projeto de Jesus. A solução apresentada pelos discípulos de despedir as multidões para comprarem alimento deve ter sido sugestão de alguém da comunidade. Cada um resolveria o problema por sua própria conta. Tal solução era problemática, pois havia quem não estava em condições de providenciar seu sustento. O caminho indicado por Jesus – “Dai-lhes vós mesmos de comer!” – seguia noutra direção. A superação do problema exigia a participação de todos. Como? Partilhando da própria pobreza. No texto evangélico, os discípulos dizem: “Temos aqui apenas cinco pães e dois peixes”, como se fosse uma propriedade coletiva, pois não se faz menção a quem trouxera aqueles alimentos. Esse primeiro passo exigiu um grande desapego, que permitiu colocar à disposição de todos aquele bocado de comida, quiçá, suficiente para matar a fome de duas ou três pessoas.

O passo seguinte consistiu em organizar a multidão, para que tudo se fizesse com muita ordem, sem atropelos e empurra-empurra. Caso contrário, haveria o risco de pessoas serem pisoteadas e os “espertos” deixarem com fome os idosos, os doentes, as crianças. Jesus, então, faz um gesto que recorda as celebrações eucarísticas da comunidade. Em seguida, parte os pães, passa-os aos discípulos que, por sua vez, passam às multidões. Quem recebia sua porção, embora pequena, deveria pensar no irmão ou na irmã ao seu lado e partilhar com ele ou com ela. Nada de egoísmo! Nada de pensar só em si! Todos eram desafiados a sintonizar a carência do próximo e dividir com ele seu pedacinho de pão, ou seja, condividir de sua pobreza. O resultado foi que todos comeram, ficaram saciados e ainda sobrou uma grande quantidade de pedaços. O versículo final pode ser entendido no sentido de que ninguém pode ser excluído da partilha, de modo especial, as categorias mais fragilizadas da época, as mulheres e as crianças.

Lida nessa perspectiva catequética, a perícope evangélica deve levar os leitores e os ouvintes a tomarem consciência de que a solidariedade e a partilha se constituem na proposta evangélica para a solução dos grandes problemas da humanidade, entre eles, a fome. Portanto, o texto evangélico não se preocupa com o que o Jesus terreno exatamente fez e, sim, com o que a comunidade deve fazer. Em face da ordem do Mestre, devemos nos perguntar: que nos cabe fazer, hoje, para dar de comer à humanidade faminta no deserto existencial em que se encontra? Se nos convencermos que a solução passa pela solidariedade e pela partilha, a catequese evangélica terá produzido frutos em nossos corações. Então, seremos nós, nos passos de Jesus de Nazaré, os multiplicadores e as multiplicadoras de pães!

 

Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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