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De 2013 a 2023: dez anos de “vertigem”?

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Geraldo De Mori, SJ

… para o Senhor um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pd 3,8)

O mês de junho de 2023 evoca para muitas pessoas as famosas “Jornadas de junho de 2013”, consideradas por vários intérpretes contemporâneos do Brasil como um divisor de águas da vida política do país. Como a fé cristã é encarnacionista, ou seja, sempre se inscreve na carne da história, que implica lugares e tempos precisos, para os que se dizem discípulos e discípulas de Jesus, sem dúvida alguma, retornar a esses eventos 10 anos depois é não só um “dever de memória”, mas também um perguntar-se sobre os aprendizados desse tempo, numa perspectiva “sapiencial”, que não se satisfaz com o pessimismo de Qohélet, segundo o qual “não há nada de novo debaixo do sol” (Ecl 1,9), nem com a ideia de que as grandes “fraturas” que interrompem a história nada ensinam aos que continuam, de uma maneira ou de outra, a levá-la adiante.

O estopim que desencadeou as famosas “Jornadas” foi o aumento de 20 centavos no transporte coletivo em São Paulo. As manifestações, convocadas por jovens, logo se alastraram por todo o país, transformando-se então nas maiores expressões da revolta popular no novo milênio. Alguns leitores das sociedades contemporâneas acreditavam que esse tipo de movimento, vindo do mundo juvenil, era um fenômeno do passado. Outros, no entanto, viam nesse fenômeno algo parecido ao que vinha ocorrendo em outras partes do mundo, como a “Primavera árabe”, no norte da África, os “Indignados”, na Espanha, os que protagonizavam o “Occupy Wall Street”, nos Estados Unidos. O que os protestos juvenis indicavam, e com isso uma parte significativa da população se identificou, era um mal-estar com os novos rumos do mundo liberal e globalizado, que produzia novas formas de exclusão, denominadas pelo Papa Francisco de “descartados”.

O governo de Dilma Roussef não soube compreender o significado daquelas “Jornadas”, e tampouco o partido que lhe dava sustentação, preocupado mais em manter-se no poder do que em captar as energias novas que emanavam daquela revolta. Muitas lideranças novas que surgiram mas manifestações foram então “capturadas” por aquilo que posteriormente ficou conhecido como a “nova direita” do país, a qual, nos anos que se seguiram, prepararam o terreno para uma “extrema direita”, que conseguiu recrutar entre seus seguidores uma juventude desencantada, fortemente conectada nas redes sociais, que conseguiu trabalhar o ressentimento de certos segmentos da população, sobretudo das classes médias, transformando-os em ódio contra aquilo que a esquerda tinha se tornado: defensora das “minorias”, dos direitos humanos e do meio ambiente.

Ao “politicamente correto” encarnado pelos governos de esquerda opôs-se pouco a pouco o “politicamente incorreto”, e isso foi assumido como “modus operandi” dos grupos que apoiaram a liderança que fez convergir para si as insatisfações iniciadas em 2013, elegendo-se, em 2018, Presidente do país. Durante quatro anos, uma verdadeira desconstrução do Brasil que havia sido projetado na Constituição de 1988 teve início, dando força e institucionalizando não tanto o que poderia responder às insatisfações expressas em 2013, mas, pelo contrário, o que as tinha exacerbado. A polarização que caracterizou a condução do último governo, e que parece ter-se reduzido nos últimos meses, com o novo governo, continua, no entanto, alimentando o projeto de desconstrução de uma nação que respeita os direitos de todos seus filhos/as. O esvaziamento dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, as tentativas de fazer aprovar a “ferro e fogo” a exploração de petróleo na foz do Amazonas, a aprovação, nos últimos dias, do Projeto de Lei conhecido como Marco Temporal, mostram que o chamado “campo conservador” das forças políticas no Brasil continua forte e tentando ditar sua lógica na condução dos destinos do atual governo. E as narrativas desse “campo político” são sempre as mesmas: trata-se de defender os interesses do país. Na verdade, porém, os interesses em questão são os dos que detêm o poder econômico, atentando contra uma forma realmente sustentável de convívio com o meio ambiente, como mostram as grandes áreas devastadas pelo agronegócio e a mineração. Esse tipo de exploração “insustentável” dos recursos e riquezas do Brasil, podem até fazer aumentar o saldo de sua balança comercial, oferecer alguns empregos para certos setores da população, muitos deles precários ou “escravos”, como tem sido continuamente denunciado, mas correspondem a interesses de uma elite predadora, e não aos interesses da nação. O que motivou as manifestações de 2013 não foi mudado.

A que convida essa constatação, de caráter político, a quem se diz discípulo e discípula de Jesus? O que a fé cristã tem a dizer, dez anos depois, sobre o que decorreu dessas manifestações? Grande parte dos “fiéis” se contenta em apenas viver o dia a dia, sem se deixar interrogar pelos “sinais dos tempos”, como dizia o Concílio Vaticano II, sendo manipulados por aqueles mesmos que atentam contra seus direitos básicos. A luta pela sobrevivência consome, na maior parte do tempo, todas as suas energias. No entanto, é preciso aguçar o olhar da fé, buscar nos acontecimentos a “passagem de Deus”. Com efeito, essa passagem não aconteceu apenas no passado, como pode parecer certa leitura dos textos bíblicos, que podem levar a pensar que o que aconteceu então não acontece mais hoje. Deus continua, como diz o livro do Êxodo, vendo a “humilhação” de seu povo, escutando seu “clamor”, conhecendo seu “sofrimento” e “descendo” para libertá-lo das mãos dos novos “faraós” que o oprimem, suscitando novos “Moisés” para tal tarefa (Ex 3,7-12). Na verdade, todo/a leitor/a do texto sagrado, que se torna “discípulo/a do reino dos céus”, é convidado/a a descobrir nesses textos um “tesouro”, que lhe permite encontrar “coisas novas e velhas” (Mt 13,52), ou seja, é chamado/a de novo a deixar que o Espírito que suscita nele/a a fé o/a faça fazer novas todas as coisas (Ap 21,5). Portanto, reler um evento como o que teve início em junho de 2013, pode, dez anos depois, ser ocasião para deixar-se instruir pelo que dele derivou.

Algumas pessoas acreditam que as tragédias ou as grandes rupturas provocadas por alguns acontecimentos históricos não ensinam nada, deixando, no máximo, um trauma, que precisará depois de tempo para ser “tratado” ou “sublimado”. É o que parece, segundo tais pessoas, ter acontecido com a pandemia. Mal se saiu dela e se retorna aos velhos hábitos, muitos deles insustentáveis a logo prazo. É o que parece também determinar a “lógica” de certos grupos políticos no país após o “trauma” de um governo fascista de extrema direita que tentou desconstruir o mínimo de civilidade que nele existia, pautando ainda os debates e decisões que buscam implementar na política.

Para a fé cristã, porém, o apelo à conversão, como aparece na primeira palavra dita por Jesus no evangelho mais antigo, o de Marcos (Mc 1,15), continua sendo a referência, ou seja, a fé cristã é portadora de uma esperança teimosa, que a faz “lutar sempre contra toda esperança” (Rm 4,18), o que significa, no caso da memória dos dez anos das Jornadas de junho de 2013, que é preciso revisitá-las, perguntando-se, à luz da fé, sobre sua capacidade de criar outras dinâmicas que a que parece ter se estabelecido.

 

Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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