Geraldo De Mori SJ
“Bem-aventurado os que ouvem as palavras da profecia e guardam o que nela está escrito, pois o tempo está próximo” (Ap 1,3)
Geraldo De Mori, SJ
A famosa lenda da esfinge, animal mitológico com corpo de leão e cabeça humana, possui duas versões, uma grega e uma egípcia. Na versão grega, essa criatura terrível aborda quem ela encontra com a frase: “decifra-me, ou te devorarei!”, apresentando em seguida o enigma a ser decifrado. De muitas maneiras, tanto essa frase quanto o mito da esfinge foram interpretados ao longo da história. Para muitos, o enigma proposto pela esfinge é cada um diante da questão que é para si mesmo. Essa questão é que está na origem do conhecimento de si e das grandes interrogações que cada um vai encontrando e respondendo ao longo da existência. Ela pode também ser uma questão coletiva e desencadear uma resposta coletiva. Um determinado grupo humano, unido pela mesma condição social, étnica, de gênero ou religiosa pode encontrar-se diante de perguntas que o colocam radicalmente em questão. Nesse ano de 2022, por ocasião do segundo centenário de sua independência e do primeiro centenário de um evento ocorrido em fevereiro de 1922, conhecido como Semana de Arte Moderna, o Brasil, enquanto coletividade, ou seja, enquanto nação com identidade e destino próprio, é de novo colocado diante das perguntas: “Que dizes de ti? Quem és?
A primeira resposta que os europeus deram à pergunta sobre a terra diante da qual se acercavam foi religiosa, por causa da época em que chegaram à costa brasileira: Terra de Santa Cruz. O imaginário edênico também ajudou a interpretar os povos que habitavam aquelas terras: eram como Adão e Eva antes do pecado, em estado de inocência. A terra parecia propícia pois “em se plantando, tudo dá”. Mas esse olhar, entre religioso e idílico, com reminiscências bíblicas, ao se tornar projeto colonizador, ganhou contornos violentos e predadores: a primeira mudança no nome daquela “nova” terra: não mais Terra de Santa Cruz, mas Brasil, o mesmo nome da árvore avermelhada da qual se podia explorar algo em benefício do colonizador. Em seguida, da exploração da madeira se passou à da terra, com mão de obra escrava, inicialmente dos povos originários, em seguida dos africanos tornados mercadoria a ser caçada, aprisionada, vendida e transportada, para transformar a terra em canaviais que produzissem o açúcar. A descoberta do ouro enriqueceu como nunca a metrópole e aumentou como nunca a exploração de mão de obra escrava, suscitando também revoltas que deram origem aos primeiros sonhos de uma nação independente e livre. À pergunta pelo enigma do Brasil no período colonial a resposta foi a de uma devoração real: de suas terras e riquezas, de sua gente e dos milhões de homens e mulheres trazidos da África.
A Independência, cujos 200 anos se celebram neste ano de 2022, apesar de dar autonomia à nova nação, não mudou a lógica devoradora que a viu nascer e aos poucos crescer e ocupar o lugar que ocupa no concerto das nações. Os novos “donos do poder”, não mais oriundos da antiga potência colonial, se haviam apropriado da lógica na qual o país tinha sido plasmado. Seus padrões “civilizacionais” eram os mesmos dos que haviam iniciado o projeto colonial. Os movimentos literários que deram então origem à intelectualidade nacional, apesar de cantarem a beleza da terra e o vigor de seus habitantes, não se apropriaram de fato daquilo que exaltavam. Ao contrário, por uma espécie de complexo de inferioridade, denominado por Nelson Rodrigues de “complexo de vira-lata”, os que inicialmente comandavam os destinos da nação, desprezavam o fato dela ser constituída de negros, indígenas e mestiços. Para “embranquecê-la”, implementaram um processo migratório que a assemelhasse com a que esteve em sua origem. É impressionante, para não dizer trágico, como tantos representantes da elite desprezam o que é nacional, tendo como referência do que é a cultura aquilo que vem de fora: da Europa, dos Estados Unidos. E transferem isso para boa parte da população, que passa a ter como sonho de consumo sair do país. Mesmos os mais pobres, aos quais são negadas as condições de vida digna, comungam atualmente dos mesmos ideais presentes na elite, submetendo-se às mais terríveis condições para conseguir realizá-los.
Numa espécie de “paródia” da identidade nacional, Oswald de Andrade, dando seguimento à Semana de Arte Moderna, cujo centenário foi celebrado em fevereiro de 2022, propôs, em 1928, no seu Manifesto Antropófago, a metáfora da antropofagia para responder ao “enigma” do Brasil e dos brasileiros. Contrariamente à lógica devoradora da elite nacional, que a transfere para todos os que vivem de suas “sobras”, a metáfora oswaldiana se inspirava no ritual antropofágico dos tupis. Segundo esse ritual, os guerreiros presos numa batalha eram mortos e consumidos em base à crença de que suas “virtudes” e sua “bravura” seriam transferidas para quem participasse do ritual. Mais que de “devoração” tratava-se de “apropriação”. Essa lógica, segundo o autor modernista, é a que caracterizaria a autêntica cultura nacional. Nos últimos 100 anos muitos voltaram à leitura de Oswald de Andrade para dizer “o que faz o brasil, Brasil?”
O princípio constitutivo da fé cristã é o da encarnação. Segundo esse princípio, Deus, em Jesus, assume a condição humana com tudo o que lhe é próprio. Nada do que é humano é estranho a Deus. Nesse sentido, quem se diz discípulo de Jesus é chamado a viver a dinâmica própria da encarnação, assumindo as realidades nas quais a fé é anunciada, em cada tempo e lugar, seja para elevá-la à “estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4,13), seja para “salvá-la” de tudo o que nela é sinal de morte, sofrimento, escravidão, pecado. No caso do Brasil, certamente não se pode julgar, com os critérios do tempo presente, o que fizeram os evangelizadores que trouxeram a fé ao país junto com o processo colonizador. A fé pode, contudo, à luz do princípio da encarnação, participar dos processos que contribuam para o processo de cristificação do Brasil. Cristificar não significa levar o conjunto dos habitantes do país a se tornarem membros das igrejas cristãs. Trata-se de trabalhar, com homens e mulheres de todo tipo de crença ou mesmo com pessoas que se dizem sem nenhuma pertença religiosa, na construção de uma coletividade menos injusta, promotora da harmonia entre as diferentes pessoas e destas com o mundo em que vivem. No caso de responder ao enigma do país, trata-se de ajudar a todos a saírem da lógica da devoração, feita de uma “gula” que leva à destruição, e a entrarem na lógica da apropriação, feita da acolhida e da distribuição.
Algumas igrejas cristãs interpretam a lógica da encarnação à luz de um outro ritual “gastronômico”: o da eucaristia. Nesse ritual, Jesus, ao abençoar o pão e o vinho, dando graças ao Pai, mostra o que é a lógica de um dom que é capaz de desapropriar-se em função da vida em plenitude para o outro, sobretudo para o pobre e o sofredor. O corpo e o sangue de Cristo dados para os discípulos, para o perdão dos pecados, mostra qual o caminho de cristificação do mundo privilegiado pelo próprio Jesus: o caminho da não devoração, o caminho de uma entrega gratuita, para que o outro viva. Oxalá, diante do enigma que o Brasil ainda é para si, a fé cristã dos/as brasileiros/as os/as ajude a contribuir para que seja convertida a lógica devoradora e vença a do dom.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE