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Decifrando o pão de queijo

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Carlos Roberto Drawin

O pão de queijo, tradicional e delicioso quitute mineiro, não precisa ser decifrado, apenas saboreado. Simples ou recheado, com café ou acompanhando um copinho de pinga. As opções são muitas e, até mesmo, há quem não o aprecie. A decifração seria, por ventura, conhecer a sua receita na correta proporção dos seus ingredientes? Ou, antes, averiguar quais seriam os tipos mais apropriados de queijo, o seu ponto de cura ideal ou, para os de maior vocação científica, consistiria em avaliar o seu valor nutritivo ou investigar a composição química do polvilho?

Eu tenho em mente um outro tipo de decifração. Não o do pão de queijo como uma coisa dentre outras, mas como portador de uma tradição, guardador de memórias e afetos e, sobretudo, do gosto em partilhá-lo num intervalo de descanso como um parêntese ameno na rotina do trabalho. Como tantas outras comidas quando partilhadas, e aqui eu o escolho por minha mineirice, ele bem pode traduzir, além do prazer, um aceno de amizade e o acolhimento. O pão de queijo, resume, então, em sua simplicidade e despretensão, um complexo feixe de saberes e fazeres humanos. No quotidiano, o comemos distraidamente e assim deve ser. Não o interrogamos filosoficamente, embora ele certamente materialize um pouco de nossa história, cultura e sociedade. Não é por esse prisma que eu gostaria de abordá-lo. Embora sendo um signo de nossa particularidade, ele também pode ser tomado como exemplo de um mecanismo universal e, em sua função de gesto, poderia ser substituído pelo acarajé, o quibe, o pastel ou a tapioca. Qual seria, poder-se-ia perguntar com curiosidade, tal mecanismo?

Tomemos um exemplo aleatório no qual ele participa como mediador de um encontro, podendo ser um desencontro. Concretizo a ideia num fragmento narrativo. Alguém saiu cedo de casa para o trabalho. Vou chamá-lo José. Pois bem, José tomou um café rápido, pois tinha de se apressar para não chegar atrasado. No final da manhã, a fome apertou e ele saiu e entrou num bar ao lado do local onde estava empregado. No justo momento em que, faminto, iria devorar a guloseima mineira, chega o seu colega Mário. Ele interrompe abruptamente o movimento de levar o bocado à boca e, meio contrafeito, esboçando um sorriso, indaga: “você quer um pedaço?” O colega de trabalho, também faminto, recusa a oferta, dizendo sem muita convicção já ter lanchado.

O que esteve envolvido nesse brevíssimo episódio? José não queria partilhar o pão de queijo, mas o ofereceu como se o quisesse. Ele teria sido falso? Hipócrita? Mário estava com fome e sem dinheiro, e queria aproveitar a oportunidade, mas a recusou inventando uma desculpa que o outro não acreditou. Ele teria sido falso? Mentiroso? Para além desses juízos morais um tanto apressados e inadequados, o que ocorreu nesse pequeno recorte da vida quotidiana foi algo extraordinário e que poderíamos designar como o exorcismo da violência potencial sempre presente na vida em comum. José interrompeu o seu ato e conteve o seu desejo de comer enviando ao colega uma mensagem de solidariedade. Mário soube decodificá-la e também conteve o seu desejo de comer e, com a sua polida recusa, respondeu que havia entendido a mensagem emitida pelo outro. Na contenção de seu desejo, eles encarnaram no não dito de sua renúncia comum, o impulso de transcendência que nos habita.

Essa é a condição essencial da vida sociopolítica que é, justamente, a contenção possibilitadora do saber viver em comum. O exemplo é tão simples e corriqueiro que um desdobramento alternativo nos parece quase caricatural. Mas, assim mesmo, vou registrá-lo.  José, ao ver o Mário, viraria as costas para ele, nada diria, priorizando a sua fome e a posse do precioso pão de queijo. Por seu lado, Mário, irritado, avançaria contra José e se apossaria do objeto por ambos desejado. A fome passaria ao segundo plano e o ódio ocuparia a cena. Será que tudo isso seria uma bobagem, uma ficção absurda? Contudo, quantas brigas, agressões e assassinatos acontecem todos os dias nas ruas, nos bares, no trânsito, entre torcidas de futebol e, pior, na intimidade dos lares? No Brasil do feminicídio, quantas mortes ocorrem por ciúmes e vaidades feridas?

O mecanismo aqui ilustrado por esse episódio banal foi decifrado pelo historiador, literato e antropólogo francês René Girard, com suas teorias do desejo mimético e do bode expiatório. Retomemos o exemplo. O pão de queijo, como muitas outras coisas, parece responder a uma necessidade. No entanto, no espaço da subjetividade humana, as necessidades mais básicas, como a sede, a fome e o frio, transformam-se em desejos e os objetos de desejo são muitíssimos e indeterminados. Ora, assim nos mostra Girard, os desejos não são suscitados pelos objetos em si mesmos, como ocorre com as necessidades mais básicas, porque eles se originam dos desejos de outros sujeitos, de seu olhar possessivo. Assim, um celular, uma roupa ou um carro tornam-se valiosos não apenas porque são úteis, mas porque neles convergem os desejos de muitas pessoas. Essa convergência é a mimese, a imitação inconsciente. Em sua origem mimética, eles são continuamente estimulados, realimentados e incrementados pelos desejos dos outros. Esse é o papel da publicidade, dos astros, dos “ricos e famosos” e mesmo daquelas pessoas da convivência rotineira que, de alguma forma, suscitam em outras o ressentimento por suas carências e limites. Essa é a teoria do desejo mimético de René Girard e ela nos ajuda na decifração do pão de queijo, isto é, na compreensão do imenso potencial de violência que se oculta nas relações humanas.

Seja como for, a contenção do desejo frequentemente fracassa e dá lugar a uma rivalidade crescente e mortífera e, nesse caso, podemos falar, então, em rivalidade mimética, porque os desejos rivais visam um objeto próximo: um cargo numa empresa, uma posição de prestígio, uma pessoa idealizada. Alguns psicanalistas já tinham diagnosticado esses ódios corriqueiros como produzidos pelos “narcisismos das pequenas diferenças”. A teoria de Girard também nos mostra como a violência difusa pode ser canalizada, como uma medida protetora da sociedade, ao se concentrar num ponto de alteridade. Quando isso ocorre, aquele outro diferente de nós torna-se o ameaçador de nossa identidade e é, por isso mesmo, julgado como nosso inimigo, o “outro” a ser extirpado numa espécie de ritual de purificação. A rivalidade mimética é apaziguada, desse modo, por meio da escolha de um bode expiatório, aquele que sendo suposto responsável por todas nossas frustrações é visado pelos discursos de ódio.

Numa perspectiva política mais ampla, nós vemos isso se suceder nas disputas de fronteiras, nas guerras civis, nos confrontos entre etnias e, então, testemunhamos, às vezes perplexos, como a proximidade entre os rivais não abranda a violência e, sim, a torna ainda maior, chegando a convertê-la em inominável crueldade. Tais horrores estariam restritos ao obscurantismo do passado ou resultariam dos impulsos mais primitivos da humanidade? A resposta, infelizmente, só pode ser negativa, pois a destruição, os genocídios e massacres se espraiam por toda a história contemporânea, a evidenciar que a civilização e a barbárie andam de mãos dadas. Seria supérfluo mencionar uma vez mais a devastação das guerras mundiais e os totalitarismos nazista e estalinista. Mas, infelizmente, aqueles horrores não foram exceções, se ao lado daqueles eventos bem conhecidos colocarmos outros, quase esquecidos, como as guerras da Coreia e do Vietnã, as guerras de independência da Argélia, da Eritreia, de Biafra e do sul do Sudão, a limpeza étnica na Bósnia, o genocídio dos Tutsis em Ruanda. Os números são espantosos. Os milhões de mortos, mutilados, aprisionados e refugiados desafiam a razão e nos fazem duvidar do destino de nossa humanidade.

Penetrar no enigma da violência, sem sonhos vãos e ilusões fáceis, é um imenso desafio científico e moral. A teoria de Girard não é resposta pronta, mas um convite à reflexão e também uma advertência em relação ao amálgama de individualismo e massificação que caracteriza o nosso tempo. Não se trata de catastrofismo e desespero. A micronarrativa ficcional de José e Mário, em sua renúncia recíproca do desejado pão de queijo, pode ser uma pista de transcendência, nada muito excepcional, pois ela se concretiza na contenção simbólica do desejo em nome do bem comum. Sim. Algo tão simples e comum que talvez possa ser chamado de a “banalidade do bem”.

Carlos Roberto Drawin é professor emérito da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

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