Geraldo Luiz De Mori, SJ
“A esperança não decepciona, pois o amor de Deus foi derramado em nosso coração pelo Espírito Santo” (Rm 5,5)
Em 1979, Ivan Lins e Vitor Martins compuseram a música Desesperar jamais, num momento em que começava o movimento de abertura política após os anos mais duros da ditadura militar. A música conseguia traduzir o sentimento de então, mostrando, por um lado a capacidade de resistência e resiliência do povo brasileiro, e, por outro, como diz Paulo na carta aos Romanos, a importância de “esperar contra toda esperança” (Rm 4,18), pois a “esperança não decepciona” (Rm 5,5).
No dia 3 de junho de 2024 morreu um dos grandes teólogos do século XX, Jürgen Moltmann, cuja teologia se destacou justamente por resgatar a centralidade da esperança na vida e no pensamento cristão. Um olhar realista para a geopolítica global e para os debates políticos do Brasil nas últimas semanas pode, no entanto, desencorajar quem busca “manter sempre acesa a lamparina” da esperança. Os recentes desdobramentos do conflito entre Ucrânia e Rússia, e os contínuos ataques de Israel aos palestinos, sem contar as inúmeras “guerras aos pedaços” que assolam o mundo (FT 25), ao invés de esperança, parecem paralisar boa parte do “cidadão comum”. O mesmo acontece com o recente resultado das eleições na Europa, que sinalizam para mudanças progressivas nas opções relacionadas ao meio ambiente e à acolhida de imigrantes. A isso se acrescentam ainda os presságios de uma possível vitória de Trump nos Estados Unidos, radicalizando uma política que se baseia na construção de muros, na supremacia dos brancos, dos ricos, dos homens… Se o olhar se volta para o Brasil, sobretudo no campo da política, os motivos para esperar parecem também débeis: os debates no legislativo nacional, por exemplo, não sinalizam para a busca do bem comum, mas para a defesa de interesses corporativos ou apenas eleitoreiros.
Em 1981 André Comte-Sponville escreveu o livro Tratado do desespero e da beatitude, traduzido no Brasil em 1997, no qual afirma que quem espera é prisioneiro do futuro e do próprio sonho, perdendo o único caminho real que é o do hoje. Ainda segundo o filósofo francês, as religiões, com ou sem Deus, lançam esta armadilha, transformando a esperança em ópio do povo. Por isso, é necessário reinventar um saber sem mistificação nem fraqueza, uma “sabedoria do desespero”, que seria a sabedoria para o tempo atual.
Esse texto, já datado, preanunciava, numa perspectiva estoica, o caminho que então já parecia emergir: o da cultura do indivíduo, responsável por construir o próprio presente e futuro, sem mistificação, descrente das correntes filosóficas que haviam alimentado boa parte do pensamento econômico, social e político dos dois séculos precedentes. Para muitos intérpretes do mundo que então emergia, denominados de pós ou hipermodernos, o mundo construído a partir do iluminismo era baseado nas “grandes narrativas”, sejam as de tipo liberal, protagonizadas, do ponto de vista político, por partidos de “direita”, ou as de tipo social, encarnadas por partidos políticos socialistas ou de esquerda. As duas grandes guerras mundiais do século XX eram a referência crítica a partir da qual pensar um outro tipo de consciência histórica, baseada nas “pequenas narrativas”, que resgatassem a memória marginalizada de tantos grupos injustiçados pelo pensamento hegemônico. O colapso do mundo marxista construído no pós-segunda guerra, com a queda do muro de Berlim e a dissolução da antiga União Soviética, trouxe uma nova configuração ao mundo. O que muitos não viram, porém, era que a nova configuração era fundada nos princípios do liberalismo econômico, baseado, sobretudo, na economia de mercado e de consumo, focada no desejo e no interesse dos indivíduos.
Na verdade, o fim do mundo construído pelas grandes narrativas parecia dar origem a um mundo com uma única narrativa: a do capitalismo neoliberal. As pequenas narrativas, que ganharam importância desde então, sobretudo na afirmação de identidades negadas ou subalternizadas, conseguiram ser mais visibilizadas, assegurando direitos e conseguindo afirmar-se, mas sem unir-se para criar o que o Papa Francisco tem chamado de um “nós”, ou seja, um sujeito coletivo que pensa o bem comum e não apenas os próprios interesses, colocando-se assim como alternativa à grande narrativa neoliberal e de sua “economia que mata”. A lógica que preside a essa economia é extremamente letal para o meio ambiente, e, apesar de avanços no despertar da consciência ecológica e nas discussões sobre a transição energética, a perspectiva predatória domina nas grandes decisões econômicas das principais economias do mundo. É impressionante, por exemplo, ver como no Brasil, apesar da tragédia climática do RS ter sido associada à ação predatória dos grandes interesses do capital, sobretudo do agronegócio, certos movimentos políticos recentes têm unido os grandes representantes desse setor para pautas que parecem não ter aprendido nada da tragédia. Num outro campo, em nome de uma soberania energética, pretende-se explorar petróleo na foz do Amazonas, um dos biomas mais importantes do mundo, que pode ser seriamente afetado caso isso aconteça.
Muitos fiéis se perguntam por que a Igreja tem sempre que falar de temas relacionados à política, ao mundo dos pobres, ao meio ambiente. Seu papel, segundo eles/as, é espiritual e ela deve se ocupar com o anúncio do Evangelho, para que as pessoas se convertam, busquem a Deus, deixem-no atuar em suas vidas, dando-lhes sentido e salvação. Esse tipo de discurso tem sido fortemente enfatizado nos últimos anos, sobretudo nos ambientes católicos do Brasil. O mundo evangélico, por sua vez, também com um discurso focado na conversão e na dimensão espiritual, tem se contaminado muito com a teologia da prosperidade e do domínio, que nada tem a ver com Cristo e seu Evangelho, além de se envolverem em pautas de costumes, relacionadas, em geral, a questões morais, muitas delas, sem dúvida, importantes, mas muitas vezes longe da vida real da maior parte da população, sobretudo da que tem que lutar cada dia para sobreviver.
O texto de 1Pd 3,15 exorta os fiéis a estarem sempre prontos a darem as razões de sua esperança. Durante muito tempo, esse texto foi utilizado de forma apologética, para respaldar a necessidade de justificar a própria fé diante dos diferentes públicos com os quais o cristianismo entrou em contato: judeus e pagãos, no período do Novo Testamento; filosofia grega e gnosticismo, nos primeiros tempos da época patrística; filosofia aristotélica, na Idade Média; mundo da ciência e da filosofia moderna, a partir do século XVII. No entanto, o texto exorta a dar as razões da esperança, ou seja, o que faz com que alguém se mantenha de pé quando tudo parece ruir? Não se trata apenas de justificar, com argumentos da razão, a verdade e o significado da fé. É preciso mostrar como a esperança dá rumo e direção à existência, não tanto num futuro ou num sonho utópico e irrealizável, visto como ópio, como afirma Comte-Sponville em sua reflexão sobre o desespero, mas como algo que ajuda cada pessoa, em cada momento, a vencer o desânimo, a descrença, a indiferença diante dos desmandos da única grande narrativa vigente no mundo. Uma esperança teimosa, persistente, criativa, capaz de abrir a inteligência, a vontade e a ação a novas formas de fazer emergir o novo no mundo. Um novo que, do ponto de vista cristão, tem a ver com o Evangelho, ele mesmo sendo a “boa nova” que faz o mundo girar.
A música de Ivan Lins e Vitor Martins aponta para isso. Certamente num contexto em que o “nós” tinha muito mais consistência, mas também hoje, fazendo com que os pequenos “nós” que se criam através das pequenas narrativas, possam, quem sabe, reinventar uma nova forma de pensar não só o bem comum, mas também a vida em comum, num mundo fragmentado, com dificuldade de unir os fragmentos, mas que espera.
Geraldo Luiz De Mori SJU é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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