Pesquisar
Close this search box.

Geraldo De Mori SJ

Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão” (Ex 20,7)

 

Segundo muitos estudiosos das religiões, a experiência do sagrado é atestada em quase todas as culturas. O sagrado, também identificado por muitos deles com o santo, é aquilo que é separado, que aparece como excesso de significado e responde a certas demandas de sentido do ser humano, como as que dizem respeito ao porquê das coisas: por que a vida, por que a enfermidade, por que o mal, por que a morte? O caráter de separação instituído pelo sagrado está na origem daquilo que é o mais elementar na vida, as experiências de tempo e espaço, responsáveis pela distinção entre lugares e dias sagrados, dedicados ao culto ou à realização de sacrifícios para quem é tido por sagrado, a saber, Deus, separados de lugares e dias profanos, dedicados às tarefas do cotidiano.

Em quase todas as culturas, portanto, a resposta às perguntas radicais de sentido é dada por aquilo que elas identificam como sagrado, ao qual, em geral, denominam Deus. O mundo bíblico também é marcado pela experiência da intervenção do sagrado ou santo na existência do povo eleito, como aparece no livro do Êxodo, no chamado episódio da sarça ardente. Algo extraordinário acontece nesse episódio, uma sarça que queima sem se consumir. Moisés se aproxima e escuta a voz divina que lhe diz para tirar as sandálias, pois o lugar em que está pisando é sagrado (Ex 3,2-6). O interessante desse episódio, e que o diferencia de muitas outras manifestações do sagrado em outras culturas e religiões, é que, ao maravilhoso do que aí acontece, a saber, o queimar da sarça sem se consumir, é acrescentada a voz divina, que dialoga com Moisés e o envia para ser o mediador da libertação dos descendentes de Abraão que estavam no Egito.

A intervenção desta palavra divina vai fazer a diferença entre o sagrado da revelação judaica, que também se encontra no cristianismo, e o das demais religiões. O que a maioria dos judeus e cristãos denominam como “Palavra de Deus” tem a ver com essa diferença. Essa Palavra é mais do que a manifestação de um acontecimento extraordinário, estabelecendo a separação entre lugares e dias sagrados ou santos, e lugares e dias profanos. Israel e seu calendário também possuem dias separados, como o sábado, e lugares nos quais se prestava culto a Deus, como o templo, sobretudo o mais famoso, o de Salomão, destruído por Nabucodonosor, mas depois restaurado no tempo de Esdras e Neemias, e concluído por Herodes, o Grande. Porém, esses dias e lugares sagrados, nos quais se prestava culto a Deus, podiam se transformar em álibi para uma existência ética não condizente com o culto neles prestado. Por isso, desde muito cedo, quando teve início o período dos reis, Deus sempre enviava profetas para denunciar a manipulação do sagrado em benefício de uma forma de vida não condizente com o culto.

O Brasil vive nesses últimos anos, mas, sobretudo nesse período de eleições, um excesso de recurso ao nome de Deus para justificar opções eleitorais por um candidato ou outro. Deus serve inclusive de emblema nos discursos do atual mandatário da nação e candidato à reeleição. O fato de adotar como emblema: “Deus acima de tudo!”, além de possuir em seu nome o termo “messias”, utilizado ideologicamente para se dizer “salvador”, lhe dá uma certa aura de enviado dos céus com missão salvífica. Porém, como os reis de Israel já tinham sido desmascarados pelos profetas, é importante que os que se dizem cristãos não se deixem enganar por esse tipo de manipulação do discurso religioso e do uso do nome de Deus. Se Deus, de fato, está acima de tudo, para além do uso de seu nome, seria esperado de quem a ele recorre uma existência ética condizente com o que se declara. E a existência ética não se reduz à vida privada de quem usa o nome divino, mas ao que propõe para o conjunto da população. Muitos pastores e até padres têm se deixado enganar pela pretensa missão messiânica do atual presidente e candidato à reeleição, mesmo depois das enormes atrocidades que seu governo implementou em termos de política econômica e social, desmantelando aos poucos o que foi resultado de muitos anos de construção coletiva de um país mais justo.

Dentre os assim chamados Dez Mandamentos, que representam como que a síntese do que há de mais profundo na lei divina no Antigo Testamento, um deles busca justamente traduzir essa convicção de que o nome de Deus não pode servir de justificativa para dizer aquilo que não corresponde a Deus. O que nos catecismos da Igreja Católica se tornou “não tomar seu santo nome em vão”, e que é normalmente entendido de forma muito moralista, traduzido como não blasfemar, ou não dizer palavrão, na verdade tem um significado muito mais profundo e radical. Não se pode usar o nome de Deus para justificar ações humanas que muitas vezes terão como consequência o esquecimento dos mais pobres ou a eliminação de direitos e da justiça.

Infelizmente na sociedade atual há uma espécie de culto do tempo presente, o que leva ao esquecimento do passado e ao estreitamento do futuro. E o passado recente da humanidade foi marcado por muitos ditadores que usaram o nome de Deus para projetos totalmente incompatíveis com aquilo que é o Deus revelado em Jesus de Nazaré. O que o Nazismo e o fascismo fizeram no período que antecedeu à segunda guerra mundial é o que os autores da apocalíptica judaica chamavam de “abominação da abominação”. Na verdade, usar o nome de Deus para implementar genocídio, como foi feito por Hitler na Alemanha, ou para promover o autoritarismo, eliminando adversários, como fizeram os sistemas fascistas na Itália, na Espanha e em Portugal, utilizando-se muitas vezes do nome de Deus, é não entender nada do Deus de Jesus. Por sinal, o próprio Jesus foi condenado no Sinédrio pelo Sumo Sacerdote como blasfemo, ou seja, o representante do sagrado em Israel condenou o enviado de Deus. Algo parecido se deu com a maioria dos profetas, e Jesus recordou isso aos defensores da lei.

No período que se segue ao primeiro turno das eleições, o Brasil vive quase que uma guerra santa, na qual uma das principais armas é o uso do nome de Deus ou da religião. Muitos católicos e evangélicos têm se deixado convencer por esse tipo de argumento, sem contar as inúmeras mentiras e Fake News veiculadas em tantas redes sociais, algumas delas pelos próprios representantes das religiões, padres, bispos, pastores. Mais do que nunca é preciso exercer o discernimento. A política não pode ser exercida pelo recurso ao nome de Deus, mas ela é o lugar do diálogo e dos consensos em busca do bem comum. Deus e a religião podem certamente inspirar os que nela estão implicados, mas não podem de forma alguma se identificar com nenhuma das tendências que aí estão. Deus é sempre mais, por isso, ele é a crítica radical de tudo o que as instituições e os esforços humanos buscam fazer para que o mundo seja melhor.

Nesse sentido, Deus abre horizontes para o sonho de um mundo melhor, reconciliado, o que Jesus chamava de reino ou reinado de Deus. Oxalá, os fiéis brasileiros que se dizem seguidor da tradição judaico-cristã, tenham os olhos abertos e, mais ainda, os ouvidos para entender por detrás dos discursos o que é manipulação e expressão da abominação da abominação, escolhendo o que mais conduz à reconciliação da nação.

 

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

...