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Dez anos da Páscoa de João Batista Libanio. Memória e Legado

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Geraldo Luiz De Mori, SJ

No dia 30 de janeiro de 2014, em Curitiba, onde se encontrava para uma formação para colaboradores e colaboradoras do Colégio Sião, João Batista Libanio fez sua páscoa definitiva, aos 81 anos, próximo de completar 82 (19 de fevereiro de 2014). Jesuíta, padre, teólogo, escritor, conferencista, por muitos anos iluminou, com o brilho de sua inteligência e a capacidade enorme de comunicar-se com diferentes públicos, fiéis católicos que buscavam compreender melhor a própria fé, e homens e mulheres interessados/as em questões relacionadas ao cristianismo ou à igreja e sua presença e ação evangelizadora e profética no mundo, ao serviço dos mais pobres e da vida plena.

A recordação dos dez anos de sua partida, é, como diz o termo, um trazer de novo ao coração, como memória grata, tudo o que ele foi, viveu e ofereceu dos muitos dons que recebeu e fez frutificar através de sua vida. Certamente, essa é a experiência de quem com ele conviveu e com ele teve algum contato, seja através da proximidade afetuosa das relações familiares; seja através da vida que compartilhou com seus companheiros de vocação e missão na Companhia de Jesus, ordem na qual ingressou ainda no início da juventude; seja por meio de suas homilias de fins de semana na Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, em Vespasiano, MG, seu lugar de presença pastoral; seja através de suas aulas na Faculdade Cristo Rei, em São Leopoldo (RS) e na PUC Rio (RJ), entre os anos 1960-1970, e na FAJE (MG), a partir de 1982; seja nos inúmeros cursos e minicursos que ministrou, bem como nas conferências e assessorias que realizou pelo Brasil e pelo mundo afora; seja no Grupo Tropa, que durante tantos anos acompanhou como assessor e amigo de fé e crescimento humano e intelectual; seja no Grupo Emaús, com quem compartilhou a inquietação teológica feita a partir do contexto nacional, verdadeiro laboratório da melhor teologia elaborada no Brasil no pós-Vaticano II; seja, enfim, por meio da quantidade enorme de artigos, livros e capítulos de livros que publicou.

A memória agradecida de alguém com tantos talentos e tanta capacidade relacional, espiritual, intelectual e comunicativa pode, muitas vezes, ser situada somente no passado de quem conviveu com a pessoa a quem ela se refere. Essa memória, embora grata, circunscreve a ação de quem é recordado em um passado que não volta mais, ou que se tornou somente objeto de saudades. Como no “memorial” judaico e cristão, que não situa apenas no passado o que é objeto de recordação, mas o torna presente, atuante e relevante em cada momento em que é realizado, a memória de pessoas como Libanio não se reduz ao tempo histórico em que viveu, pois o modo como viveu, a postura fundamental que buscou manter diante da vida e o que deixou em sua passagem pelos lugares em que passou, tornou-se um legado que continua inspirando o presente.

O legado de um intelectual pode muitas vezes ser identificado com o que deixou por escrito, pois tem a materialidade da forma através da qual seu pensamento permanece, como a de um livro, um capítulo de livro, um artigo, uma recensão. O avanço tecnológico das diferentes mídias permitiu, porém, que outro tipo de legado pudesse permanecer para as gerações futuras, a saber, o que ficou registrado da ação da pessoa num determinado momento, através de uma entrevista, de uma conferência ou de um curso, que dão uma ideia de como essa pessoa atuava em certos contextos. No caso de Libanio, é interessante perceber, por “detrás” de tantos textos escritos e dos muitos registros de suas atividades, que permitem descobrir algo de sua personalidade e de seu gênio, um legado que ultrapassa o que em geral é visto como legado: sua atitude intelectual e seu modo de conceber a própria vocação do teólogo na Igreja e no mundo.

Numa conferência feita à comissão teológica dos jesuítas da América Latina, em 2006, Libanio apresentou as atitudes intelectuais que nortearam seu modo de fazer teologia e que podem ser vistas como legado para quem se sente vocacionado para esse serviço na Igreja, hoje. A primeira atitude, a atenção “crítico-dialética aos pressupostos ideológicos e antropológicos das afirmações” com as quais se busca dialogar, aponta para a disposição não só de acolher o que o interlocutor propõe, mas também de captar o que subjaz à sua fala ou ao seu pensamento. A segunda, denominada pelo teólogo mineiro de “ars combinatoria”, é a capacidade de articular, em perspectiva “generalista”, os saberes plurais que podem ajudar a compreender o problema a ser tratado pela teologia. A terceira, o caminho linguístico, faz referência ao fato de que cada afirmação que se faz em teologia é resposta a uma pergunta, daí a importância de descobrir as perguntas que estão sendo colocadas, pois assim a teologia se tornará significativa e relevante. A quarta atitude é a que busca inserir o que se quer compreender em estruturas ou esquemas gerais, com modelos, aproximações, linguagens que ajudem a captar a questão abordada e apresentá-la de modo inteligível. A quinta, criticidade e responsabilidade, assume, por um lado, o que é específico da razão teológica, a inteligência da fé, que é sempre crítica de pressupostos ingênuos e muitas vezes irracionais, e, por outro lado, o faz com responsabilidade, sobretudo frente à fé do fiel comum. A sexta atitude, o discernimento, consiste em captar o universal, que para a razão teológica é a vontade de Deus, na fragilidade das mediações, moções e sinais visíveis, locais, contextuais, particulares, ou seja, como a vontade divina, universal, se traduz no tempo e no espaço histórico de quem a busca? A última, é a passagem da preocupação pela “essência”, a “doutrina eterna”, para a atitude que estabelece relações e articulações, ou seja, nunca se contentar com o saber já é possuído ou estabelecido, mas sempre se colocar de novo a caminho, ampliando assim a compreensão da realidade.

Essa forma de fazer teologia, unida à sua capacidade de leitura e síntese, fez com que Libanio se encontrasse com muitos “públicos” diversos, com “perguntas” que demandavam “respostas” também diversas por parte da teologia que elaborou. Como acima foi indicado, dentre esses públicos se destacam: o eclesial-pastoral (paróquia de Vespasiano, Grupo Tropa, lideranças de dioceses, congregações religiosas, mundo da educação católica); o público acadêmico-universitário (representado por discentes e docentes com os quais interagiu nas aulas das faculdades em que trabalhou, dos congressos em que participou, dos livros, capítulos de livros e artigos que escreveu, por membros do Grupo Emaús, no qual compartilhava suas intuições e pesquisas); o geral, constituído por leitores e leitoras dos artigos semanais que publicou no Jornal de Opinião e no Jornal O Tempo, oferecendo o “olhar do teólogo” para as grandes questões do tempo em que viveu. Essa capacidade de passar por tantos públicos, com suas questões e respostas, faz do teólogo mineiro não alguém para ser “imitado” ou “repetido”, pois o tempo em que se formou, os dons que possuía, as habilidades que desenvolveu, não são compartilháveis. O que é “legado” dessa sua maneira de fazer teologia, sim, pode ser “imitado” e “repetido”, pois o que ele buscou em sua forma de “fazer teologia” foi levar a sério a realidade, em sua constante mutação, acreditando que nada é incompatível com a inteligência da fé, desde que vivida de forma genuflexa, humilde, sempre incompleta, em busca de dar respostas às perguntas mutantes de cada tempo e lugar, em fidelidade criativa ao coração mesmo da fé cristã, fundada na encarnação do Filho.

 

Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE)

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