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Ditinho Joana: uma arte de raízes profundas

Clovis Salgado Gontijo

Situada entre as altas montanhas da Serra da Mantiqueira, a cidade de São Bento do Sapucaí (SP) oferece a seu visitante, além das belezas de uma natureza esplendorosa, o contato com um trabalho artístico singelo e potente. Benedito da Silva Santos, por todos conhecido como Ditinho Joana, tem 76 anos e, há quase meio século, dedica-se com crescente maestria à rara arte de escultor. Descendente de um cearense e de uma ex-escrava vinda do lado mineiro da Serra, o Sr. Ditinho nasceu e cresceu em São Bento, no bairro do Quilombo, onde também se encontra seu ateliê acolhedor.

O artista revela-se conectado às raízes não só na escolha do espaço físico em que expõe e trabalha, mas em outros aspectos de seu itinerário artístico e de sua poética, a começar pelos motivos recorrentes a sua vasta obra. Feitas de madeira nobre, especialmente de jacarandá paulista, suas peças retratam, sobretudo, cenas, hábitos e ofícios característicos ao dia a dia interiorano de São Bento e de tantas partes do Brasil. Curiosamente, o Sr. Ditinho busca sua inspiração nos casos que ouvia dos pais e avós, bem como nas memórias da infância, com o objetivo de evocar um mundo mais cândido, de identidade mais preservada, como se diz, “de raiz”. Assim, o escultor elabora, ao lado de santos caros à devoção popular brasileira, caboclos em diversos contextos: sapateiros, jornaleiros, violeiros, caçadores, lenhadores, famílias de vinhateiros, mulheres preparando o café, grávidas, casais dançando, bêbados, combatentes da Revolução de 1932, tropeiros em suas mulas, uma venda da década de 1950, crianças guiadas pelos avós ou, simplesmente, fazendo arte… Por falar em fazer arte, o Sr. Ditinho demonstra a seus visitantes que não perdeu o espírito lúdico da infância: comenta as próprias obras com gestos, cantos e casos.

Voltando ao tema das raízes, dois pontos relacionados à presença da terra no universo do artista chamam particular atenção daqueles que, como eu, dedicam-se ao campo da filosofia da arte. Em primeiro lugar, o Sr. Ditinho tem o hábito de contar e guardar os passos iniciais de sua história como escultor. Com orgulho, conserva exposta sua primeira obra, na qual um padre e um indígena se colocam face a face. No entanto, sua fecunda vocação foi descoberta num momento anterior, definido, nas palavras do Sr. Ditinho, como a “raiz de tudo” (1). Em 1974, o futuro artista trabalhava numa fazenda da região e, certo dia, deparou-se com uma raiz à beira de um rio. Viu nela a forma de um bicho, que poderia ser um gato, uma girafa, um cachorro ou um cavalo. Levou-a para casa, na esperança de que a mãe o ajudasse a identificar o animal modelado pela natureza. De forma sintética, a mãe lhe respondeu não ser possível solucionar o enigma. Sabia que as formas naturais – encontradas em vegetais, minerais e outros compostos inorgânicos – são imprecisas e equívocas para quem busca estabelecer, a partir delas, uma relação de correspondência. Diante de tal impossibilidade, o rapaz tomou a seguinte resolução: “Vou deixar a raiz de lado, pego um pedaço de madeira e começo a trabalhar e dar forma na madeira do jeito que eu quero.”(2)

Essa inspiração originária, da qual só resta uma fotografia, certamente suscitaria o interesse da filósofa estadunidense Susanne K. Langer. Por um lado, o artista efetua significativa transformação simbólica do objeto “raiz”, ao reconhecer nele a sustentação, oriunda do que compreende como “terra”, de toda sua produção futura. Por outro, a maneira como o jovem Ditinho enxerga a raiz remete a um processo fundamental do fazer artístico e da própria mentalidade humana, segundo a pensadora. A criação não se dá pela mera reprodução de formas encontradas já prontas na natureza, mas pelo isolamento e destaque de certos aspectos do mundo exterior numa forma virtual cuja unidade espelha a própria unidade identificada nas coisas concretas. O ato de criar pressupõe, assim, uma espécie de abstração especial, capaz de projetar e configurar uma forma num novo suporte, no qual também é transferido algo da tonalidade emocional atribuída a determinada realidade ou experiência pelo artista. Por conseguinte, este deveria manejar, com desenvoltura, tais práticas de transposição não literal. De acordo com Langer, é tendo em vista justamente essa finalidade que Leonardo da Vinci, “numa famosa passagem de seu Libro di Pittura, recomenda aos pintores que olhem com atenção para a textura e as rachaduras das velhas paredes, ‘onde vocês poderão ver diversas batalhas e ágeis ações de figuras estranhas, expressões faciais, roupas e inúmeras coisas, que poderão reagrupar numa forma íntegra e adequada’”(3) . Sugestivamente, na continuação da recomendação, o gênio renascentista acrescenta que as observações das paredes, assim como das cinzas, das nuvens e do barro, “estimulam o talento (ingegno) do pintor a novas invenções, seja na composição de batalhas, de animais e de homens, seja na composição de lugares e coisas monstruosas (…); porque, nas coisas confusas, o talento é estimulado a novas invenções”(4) .

O contato do Sr. Ditinho com a raiz que ocultava múltiplas formas parece comprovar o ensinamento de Leonardo, assim como a hipótese de Langer. É pelo reconhecimento de “coisas confusas” que o ingegno do escultor paulista não é só estimulado, mas descoberto. O jovem Ditinho reconheceu sua capacidade (latente em seu desejo) de abstrair formas da natureza para outro suporte tridimensional (como a raiz), aspecto básico da escultura. Tais formas poderiam ser reagrupadas por suas mãos numa peça completa, cuja configuração e cujo teor expressivo resultariam não mais de incontroláveis fatores externos, mas de sua concepção, de suas escolhas, de sua técnica e de sua particular concepção de mundo. É curioso tal episódio ter ocorrido logo em São Bento do Sapucaí, cidade que tem, como seu cartão postal, o complexo da Pedra do Baú, cujas rochas também nos convidam a exercitar tal visão salutar à criação artística, identificando nelas formas da natureza orgânica.
O segundo aspecto que entrelaça a obra do Sr. Ditinho tanto à terra quanto à filosofia da arte é ainda mais óbvio, por remontar a uma das mais célebres reflexões filosóficas acerca de uma obra artística. Entre os motivos trabalhados pelo escultor, encontra-se, segundo ele, sua marca registrada: a botinha do caboclo. Esculpida em diversos tamanhos, procurada por muitos que a têm como uma espécie de amuleto, a botinha de madeira com suas dobras e furos, exposta isoladamente sobre um fundo vazio, resguarda certa semelhança com alguns dos pares de sapatos pintados por Van Gogh, incluindo aquele analisado por Martin Heidegger na primeira parte de seu ensaio A origem da obra de arte.

Embora tal análise tenha sido alvo de contestações, as poéticas palavras do filósofo alemão ajustam-se, sob medida, às botinhas do Sr. Ditinho: “Da escura abertura do interior gasto dos sapatos a fadiga dos passos do trabalho olha firmemente. No peso denso e firme dos sapatos se acumula a tenacidade do lento caminhar através dos alongados e sempre mesmos sulcos do campo, sobre o qual sopra contínuo um vento áspero. No couro está a umidade e a fartura do solo. Sob as solas insinua-se a solidão do campo em meio à noite que vem caindo. Nos sapatos vibra o apelo silencioso da Terra (…)”(5) . É como se, parafraseando Heidegger, “à Terra pertencesse a botinha e no Mundo do caboclo estivesse ela abrigada”(6) . Sem entrar na complexa distinção heideggeriana entre os conceitos de “terra” e “mundo”, é possível perceber que a botinha do Sr. Ditinho expressa, por um lado, a relação originária com a terra não só de quem usa seu modelo, mas da própria espécie humana e, por outro, desvela, com suas aberturas, o mundo do caboclo e de todos nós. Tal perspectiva estampa-se no texto, de autoria do escultor, que costuma vir inscrito na sola de sua marca registrada: “A botinha representa a nossa caminhada da vida. Subi e desci. Andei depressa e devagar. Cansei e descansei. Entristeci e me alegrei e assim sempre caminhei. Hoje estou gasta e cheia de marcas, mas, com certeza, valeu a pena.”

Em sintonia com Heidegger, o reconhecimento de algo mais essencial, relativo, neste caso, à dinâmica da vida, ocorre, para o Sr. Ditinho, no contato não com a botina que calça ou guarda no armário, mas com aquela que, esculpida com as próprias mãos, é obra de arte. O escultor da Mantiqueira descobre, assim, o diferencial da arte frente às duas categorias de “coisas” descritas no mencionado ensaio heideggeriano, isto é, quando comparada às coisas brutas da natureza, como a raiz à margem do rio, ou aos utensílios, como a botina. Retomando as conclusões de Langer, a obra de arte permite seleções, ênfases e costuma incorporar, em sua estrutura semelhante à vida, qualidades expressivas inexistentes ou pouco evidenciadas nas demais “coisas”.

Embora lamente não ter tido a oportunidade de prosseguir os estudos, o Sr. Ditinho confirma, com autenticidade e simplicidade, intuições de grandes pensadores. Marcada e perfumada pela terra, a obra do escultor nos encanta e deixa transparecer que também se enraíza em importantes fundamentos da filosofia da arte (7).

Clovis Salgado Gontijo é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

1- Palavras do artista registradas em minha visita a seu ateliê, no dia 25 de julho de 2021.
2- Ibid.
3- LANGER, Susanne. Mind: an essay on human feeling. v. I. Baltimore; London: The Johns Hopkins Press, p. 169.
4- DA VINCI, Leonardo. Trattato della pittura, 63, nosso grifo.
5- HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Edição bilíngue. Tradução: Idalina Azevedo e Manuel António de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010. p. 81.
6- “À Terra pertence este utensílio e no Mundo da camponesa está ele abrigado.” Ibid.
7- Segue o endereço eletrônico do ateliê de Ditinho Joana, para maiores informações sobre sua obra: https://www.atelieditinhojoana.com.br

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