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Dor Infinda: um apelo para a cura da memória

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Álvaro Mendonça Pimentel

Disseram-me que a ofensa sofrida altera meu sentimento do mundo, qual mudança de tonalidade. Mesmo quando eu a apresento como “fato do passado”, separado e independente dos outros acontecimentos da vida presente. Digo, por exemplo: “naquele tempo, em que mais precisei de apoio, ‘X’ me agrediu violentamente, quando pedi sua ajuda”.  A lembrança é dolorosa ainda hoje, embora eu a nomeie como algo distante de mim, algo do passado que não existe mais. Mas por que ela ainda dói em mim?

Admito que algo se modificou. Após aquele evento, nunca mais fui o mesmo. E a agressão sofrida outrora, vez por outra, me revisita em pensamento… Alguém me disse que isso é um delírio. De qualquer forma, com o passar do tempo, tornou-se tema constante de lamentações interiores. Evito conversar sobre ela, pois temo que me fira novamente. Afasto-a, com um gesto da cabeça, como quem desperta de um pesadelo. Ela retorna, porém, nas esquinas do cotidiano. Como “esquecê-la” e impedir, dessa maneira, que “X” continue agindo sobre mim? “X” segue sua existência e, quem sabe, não conhece o mal que me fez.

Aprendo que meu sentimento do mundo ou o modo como tudo me aparece depende em grande parte da minha história. E dizem-me que a memória não se compara adequadamente a uma coleção de fatos, “estocados” em algum lugar. Assemelha-se antes ao escoamento suave ou agitado das águas de um córrego. A torrente se avoluma ou mingua, a depender do regime das chuvas, da força dos afluentes ou da porosidade do terreno que atravessa. Mas ela não se rompe… E são águas coloridas, em mil tonalidades, que se penetram, se misturam e, coisa surpreendente, voltam a separar-se. O rio desemboca no profundo lago multicor da memória. Ali as águas coloridas dançam sem cessar, nas camadas mais profundas, embora a superfície apenas pareça refletir o mundo em volta. Há vida interior: minha memória, meus pensamentos, sentimentos, afetos, intenções…

Ainda hesitante, decido-me um dia aventurar-me no âmbito delicado da vida interior. Um esforço de atenção revela-me que ela se compõe e recompõe continuamente. Nela, não há cisão real entre passado, presente e futuro. O coração avança inteiro na existência. Nada fica para trás. Comprovo-o quando percebo, surpreso, que experiências antigas (“esquecidas”) marcam minhas decisões, desde as mais simples até as mais importantes.  Não há sofrimento nem alegria localizados em instante preciso e logo destruídos pelo devir. Tudo flui e se recompõe no todo em movimento do ser humano, e recria, sem cessar, o sentido de viver. Na superfície do grande lago da memória, o mundo se reflete e o lago o reconhece, jogando para o fundo as lembranças inúteis para o presente. Mas basta o mundo apagar-se, como ocorre no sonho, e o lago se vê livre para refletir o mundo interior. E a lembrança da ofensa sofrida emerge e colore sonhos misteriosos.

A dor da ofensa repercute, portanto, no todo do meu ser, pois atingiu a vida interior. É uma das cores que a correnteza levou até o lago da memória. Dor sem limitações, ainda viva, dor infinda. Não se localiza num ponto, mas colore tantos momentos do porvir. E mesmo quando cessa a dor (pois a vida reage e anestesia o coração), a lembrança da ofensa ainda corrompe a alegria de ser.

Não há esquecimento que destrua as vivências do passado. Eis porque importa muito assumir a própria história. Deixá-la emergir no discurso. Trazê-la a quem saiba escutar. Confiar que a dor da violência sofrida, compondo-se de outro modo em meu ser, ganhará outro sentido, deixará de me dominar e a vida reencontrará a beleza. E se meu eu vitimado decidisse voltar a viver e ser feliz?

Vivemos num mundo onde pululam crueldade e cinismo. Multiplicam-se as cifras das vítimas destruídas pela violência, que se duplica em vingança e desenha, assim, o “círculo das guerras”. Em algumas regiões do mundo, povos inteiros encontram-se ameaçados. E a pandemia fez ver o vazio de nossas pretensões dominadoras, mas também acendeu as paixões de sobrevivência. Os mais pobres são os primeiros a serem esquecidos e a fome semeará a revolta. Mas não há destino na história, se soubermos agir a tempo. Urge trazer à tona as dores dos povos e compreender que nos encontramos ligados numa rede de sofrimentos. A cura da memória dos indivíduos e das sociedades precisa ser promovida, como elemento fundamental para romper o “círculo”. Incapazes de apagar os acontecimentos do passado, somos capazes, graças ao dom vindo do alto, de dar-lhes outro rumo e visar a reconciliação da sociedade, na justiça e na paz.

Álvaro Mendonça Pimentel SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

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