Marília Murta de Almeida
Clarice Lispector, em seu enigmático Água Viva, livro curto e inteiramente desenvolvido como um fluxo reflexivo em torno da realidade do que existe ou, em suas próprias palavras, em torno da indagação sobre o é das coisas, nos surpreende com o seguinte parágrafo:
Voltei. Estou pensando em tartarugas. Uma vez eu disse por pura intuição que a tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou pintar tartarugas. Elas me interessam muito. Todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou muita matéria-prima – it – e formaram-se então os bichos. Para que uma tartaruga? Talvez o título do que estou te escrevendo devesse ser um pouco assim e em forma interrogativa: “E as tartarugas?” Você que me lê diria: é verdade que há muito tempo não penso em tartarugas.
Desde que li este trecho pela primeira vez senti vontade de um dia escrever algo com o título “E as tartarugas?”, talvez só por diversão. Ou porque a aparente falta de sentido da ideia me atraía como me atrai tudo o que precisa ter seu sentido descoberto. E eu era exatamente como a leitora imaginada pela narradora: há muito tempo não pensava em tartarugas. Entretanto, a partir desse dia, frequentemente me vejo pensando nelas e logo fico tragada pela atmosfera clariciana recheada de animais e plâncton vivo. O assombro diante dos bichos que a obra de Clarice Lispector revela me intriga e atrai.
A pergunta “Para que uma tartaruga?” pode ser feita em relação a qualquer animal. Os mais práticos podem responder que a utilidade de alguns é bastante evidente, seja para nos ajudar no trabalho, para nos alimentar ou mesmo para nos servirem de amigos. Mas a lógica clariciana não nos permite parar nessa resposta. Os bichos existem para si mesmos e não, para nós. O ser humano não é o centro da criação e nem os bichos são periféricos a nós. Por isso a pergunta sobre o porquê das tartarugas pode ser entendida como a pergunta sobre o porquê de tudo o que existe e não é sem razão que ela aparece exatamente no livro que se pergunta sobre o é das coisas.
O fato das tartarugas serem pré-históricas acrescenta a elas uma dimensão de permanência que não atingiríamos com a pergunta sobre nós mesmos. É um escândalo de maravilhamento que existam os bichos e que alguns estejam sobre a terra há muito mais tempo do que nós. É um escândalo que da matéria-prima de que fomos feitos tenham sido feitos também tantos outros seres com formas e cores e modos de viver tão diversos dos nossos. É um escândalo que possamos sempre perceber outro e outro sentido no que vivemos ou no que lemos.
Me parece então que o melhor modo de usar a expressão “E as tartarugas?” é quando queremos chacoalhar o que acabou de ser dito, como se quiséssemos evidenciar que não há fixidez possível no entendimento da realidade vivida. Nós, que não somos tartarugas, podemos nos perguntar por elas quando ninguém está pensando nelas e assim fazer revirar o rumo de um pensamento ou de uma conversa.
Imaginemos alguns exemplos: Hoje dirigi quase três horas, entre ir e voltar, apenas para abraçar uma moça que conheço desde que nasceu e com quem não mantenho relação constante, mas por quem sinto amor e que hoje perdeu a mãe. O pai dela era meu tio e meu padrinho e também já morreu, e eu, quando criança, achava que ele era forte e poderoso. Hoje quando a abracei num velório estranhamente frio senti que todas as coisas do mundo estavam em seu lugar. E as tartarugas?
Conheço uma senhora que já viveu 94 anos e que até outro dia apenas esquecia coisas, e agora começou a inventar. Desligada das amarras que sempre respeitou durante a vida, amarras que tolhiam sua liberdade de fazer e de pensar, ela agora inventa histórias que até soam como verdadeiras. Só quem conhece sua história sabe que são inverossímeis, de modo que, ao ouvi-la, é fácil cair nas armadilhas pregadas pelo jogo infinito da verdade com a mentira. E as tartarugas?
Clarice Lispector escreveu um longo romance sobre uma mulher que vive um estranho processo de descobertas e reflexões depois de tentar matar uma barata e fracassar. Escreveu também um conto chamado “A quinta história”, em que desenvolve cinco versões sobre uma receita para matar baratas transformando-as em estátuas de gesso. A última versão se chama “Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia”, título que certamente requer esforço e imaginação para ser compreendido. E as tartarugas?
Me perdoem a inevitável sensação de perda de tempo gerada pela leitura deste texto. A provocação de Clarice Lispector despertou em mim o desejo de rodar em círculos e viver, só viver. Sei muito pouco sobre Leibniz e sobre a Polinésia. Sei muito pouco sobre muita coisa. O que escrevo nem sempre é sobre o que sei.
E os hipopótamos?
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora nos departamentos de Filosofia e Teologia da FAJE
Foto tartaruga: Kavindu Induranga / Shutterstock