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É possível adorar a Deus ao fazer pesquisa acadêmica em Filosofia?

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Elton Vitoriano Ribeiro, SJ

Como uma vida pode ser tocada pela investigação filosófica? Essa pergunta do filósofo Alasdair MacIntyre parece ser sem sentido para a filosofia contemporânea. Afinal de contas, se para os gregos, a vida dos filósofos tinha certa relevância para compreender suas opções epistêmicas, para a filosofia contemporânea, a vida dos filósofos, esses profissionais da reflexão, normalmente acadêmicos especializados, não tem nada a ver com suas filosofias. Ora, se isso procede, então porque escrever uma vida filosófica? Talvez, para provar que as coisas não são tão simples assim. Ou pelo menos, não foram na vida de Edith Stein.

Para tornar ainda mais interessante a questão e dar sua opinião sobre a pergunta que abre esse texto, MacIntyre decide escrever um prólogo. Não uma biografia, uma hagiografia ou uma bibliografia, mas um prólogo. Um prólogo, normalmente, apresenta dados, elucida algumas questões, expõe a trama que irá se desenrolar posteriormente. Aqui, nosso autor apresenta um Prólogo Filosófico da conversão de Edith Stein que mudará sua vida para sempre; “a vida [de Edith Stein] não pode ser narrada de forma inteligível se abstraída da história de sua vida como um todo”. Sendo um prólogo, MacIntyre termina sua narração no ano de 1922, quando comenta sobre a “Filosofia Postergada” de Edith Stein. Nesse período, nossa filósofa desejava fazer um estudo crítico de Santo Tomás de Aquino, a partir da reflexão do tomismo da época e de seus conhecimentos fenomenológicos. Ela escolhe esse caminho porque, em suas palavras, “que é possível adorar a Deus ao fazer pesquisas acadêmicas é algo que aprendi, na verdade, somente enquanto me ocupava com Santo Tomás”.

MacIntyre nos apresenta o itinerário espiritual-filosófico da vida de nossa autora. A narrativa começa no ano de 1918, quando Edith Stein deixa o cargo de assistente de Husserl, e, passando por um momento de profunda crise interior, faz várias leituras. Leituras do Novo Testamento, de Kieerkegaard e de Santa Teresa de Ávila. Mas, o que mais tocou Edith Stein foi a leitura do Livro da Vida, a autobiografia de Santa Teresa: “Certa noite, (…) ela tomou a autobiografia de Teresa da prateleira, começou a ler e não pôde parar até chegar ao final do livro. Decidindo que não tinha alternativa senão ingressar na Igreja Católica”. Ao final, ela exclama para si mesma: Aqui está a Verdade! Meses depois, Edith é batizada aos 31 anos de idade, e após 11 anos, ingressa no Carmelo de Colônia. No Carmelo, adota o nome de Irmã Teresa Benedita da Cruz. No ano de 1942, com a perseguição nazista aos judeus, ela é feita prisioneira em Auschwitz, morrendo no mesmo ano. Seu amor ao povo judeu, seu povo, e sua opção católica, carmelita, marcaram profundamente sua vida. No ano de 1998, foi canonizada pelo Papa João Paulo II.

Nos primeiros capítulos, MacIntyre nos apresenta os encontros de Edith Stein com o mundo filosófico gerado ao redor das Investigações Lógicas de Husserl. Um novo ponto de partida para a filosofia nos é apresentado. Depois, narra os anos de 1913-1915, anos de formação da nossa filósofa, anos de aulas de filosofia, de crescimento na consciência política e de tomada a sério da possibilidade de se crer em Deus. No entanto, por que a vida segue outros ritmos, acontece a Primeira Guerra Mundial, e Edith Stein é treinada na Cruz Vermelha como enfermeira e, em abril de 1915, parte para trabalhar no Hospital da Cruz Vermelha na Áustria. Seus amigos tentam dissuadi-la, mas ela argumenta que “era mais necessário, dado os perigos, que mulheres com disposição séria se voluntariassem, e que ela não tinha mais direito de se eximir do sofrimento do que os soldados que estavam no front“. Eis mais um exemplo da vida filosófica de Edith Stein.

O trabalho como enfermeira marcou profundamente a vida de Edith Stein. Ela relata que nesse período de sua vida conheceu os diversos tipos de seres humanos, suas debilidades e suas forças. Pessoas provenientes das mais diversas classes sociais, idiomas, hábitos, costumes culturais e crenças. Nesse contexto, a empatia tornou-se, mais do que um conceito filosófico, uma prática diária e de importância capital. Nossa filósofa enfermeira se perguntava, “como ter consciência dos sentimentos e juízos dos outros e o que havia na própria fala e comportamento de alguém a que os outros respondiam agindo do modo que agiam”. Nesse momento da narrativa, MacIntyre faz um tocante relato da percepção de Edith Stein sobre seus pacientes que estavam diante da morte iminente. Seguindo a tradição Socrática, e depois retomada por Heidegger, nossa filósofa se sente provocada diariamente sobre o estar diante da morte. Em 1915, Edith Stein termina seu trabalho como enfermeira, retoma o doutorado, e trabalha como professora de latim, alemão, história e geografia. Edith Stein escreve uma tese de doutorado sobre o nosso conhecimento de outras mentes, especialmente, sobre o tema da empatia. O objeto de seu trabalho é o de “identificar as características essenciais da consciência empática, consciência dos pensamentos e sentimentos dos outros”.

A narrativa de MacIntyre é perspicaz e comovente, como toda narrativa de uma vida. Aqui, quero destacar apenas algumas ideias gerais que me tocaram, e que por isso mesmo, após a leitura desse livro, fazem, também, parte de minha vida filosófica: O Eu “como agente é, parcialmente, constituído em e através de relacionamentos. [Por isso], meu autoconhecimento deriva em parte dos outros”. “Todo conhecimento intersubjetivo é sempre o de uma consciência encarnada. Conhecimento de um Eu situado corporalmente dentro de um nexo de relacionamentos sociais e naturais”. “Conheço a mim mesmo através da atenção disciplinada aos meus próprios atos mentais”. “O que nos tornamos, as qualidades que chegamos a adquirir, estética, moral e intelectualmente, é, em boa medida, uma questão de nossa resposta ao nosso ambiente social e cultural”. “Os diferentes tipos de relacionamento social nos quais ingressamos têm uma diferença significativa no tipo de seres humanos que nos tornamos”. “Cada um de nós tem uma história a contar sobre como chegamos a adquirir a perspectiva que temos sobre o mundo, sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre os panoramas sociais e nacionais em que habitamos”.

MacIntyre termina sua narrativa “louvando mais as questões de Stein do que as suas respostas”. O valor filosófico do trabalho de Edith Stein, como todo trabalho especulativo, “não são tanto um convite à concordância quanto a repensar em sua companhia questões com as quais ela se preocupava”. “E, já que ela, de modo geral e característico, identificou questões que são e continuam a ser filosoficamente cruciais, isso faz dela uma pensadora muito mais importante do que muitas vezes se julgou”. Finalmente, e mais uma vez com as palavras do próprio MacIntyre: “Mas ao ler Stein, como ao ler qualquer filósofo, é necessário compreender onde ela começa e por que ela parte daí. De tal modo que, ainda que este livro não nos leve para além dos começos de Stein, ele pode, ainda assim, prover uma espécie de introdução, não apenas aos seus escritos filosóficos antes de sua conversão, mas também àquelas obras posteriores das quais os seus primeiros escritos formam um prólogo”. Portanto, eis um instigante livro, de um importante filósofo, sobre parte da vida filosófica de uma mulher, religiosa e filósofa, extraordinária. Livro que ao narrar uma vida possui a brilhante capacidade de iluminar nossas vidas nessa inescapável busca filosófica que é viver.

[Leia na íntegra: https://periodicos.ufpi.br/index.php/pensando/article/view/4052]

 

Elton Vitoriano Ribeiro, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

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