Padre Alfredo Sampaio Costa SJ
Em sua carta encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco destaca o encontro entre as culturas como “uma oportunidade de enriquecimento e de desenvolvimento humano integral de todos”, por isso, fala da importância de uma “oferta recíproca” entre as culturas: para isso, precisamos comunicar, descobrir as riquezas de cada um, valorizar aquilo que nos une e olhar as diferenças como possibilidades de crescimento no respeito por todos. Torna-se necessário um diálogo paciente e confiante, para que as pessoas, as famílias e as comunidades possam transmitir os valores da própria cultura e acolher o bem proveniente das experiências alheias (Cf. Fratelli Tutti 133-134).
Quais seriam as características de uma espiritualidade que assuma os desafios da interculturalidade e se mova em um espírito sinodal de escuta e respeito? Queremos aqui, sem a pretensão de sermos completos, elencar alguns aspectos para nossa reflexão. Seguimos e comentamos a exposição de Gonzalo M. de la Torre Guerrero a partir de uma sua conferência proferida em 2010 no 2º. Congresso de Espiritualidade Claretiana em Bogotá[1].
1ª. Uma espiritualidade intercultural e sinodal exige, em primeiro lugar, um ato de fé na presença de Deus em todas as culturas. Colocar-nos com respeito diante de outra cultura é reconhecer o valor de suas próprias verdades, a dignidade de sua própria cultura, o direito de que o que já foi construído em um valioso processo histórico não seja destruído por nossa “evangelização”. É reconhecer que Deus está presente em todas as culturas. Esse primeiro aspecto exige uma profunda abertura e atitude positiva para com o diferente e o pouco conhecido!
2ª. Tal espiritualidade expressa o reconhecimento de que Deus salva os seres humanos de muitas maneiras.Precisamos repensar a salvação que oferecemos aos outros. Fazemos isso na medida em que entendemos o verdadeiro significado da salvação que oferecemos na pessoa de Jesus Cristo. Por isso, comecemos por recordar, antes de tudo, que Deus quis que o Jesus da história nascesse dentro de um processo, depois de milhões de anos em que muitos seres humanos procuraram e criaram caminhos e mais caminhos, procurando procurar realidades de amor, justiça e verdade que lhes permitissem prolongar-se na história… Estes seres que precederam Jesus ficaram sem salvação, porque eles não tinham o exemplo de sua ética? Antes de Jesus, havia na história culturas e personagens de uma profunda espiritualidade que guiava a humanidade. Jesus, na sua vida e doutrina, retomou as experiências de amor e de justiça dos seus predecessores e, assim, ratificou o valor moral daqueles que o precederam. O mesmo deve ser dito das culturas que existem no mundo, depois da encarnação de Jesus e que ainda não o confessaram como o Filho de Deus. Em todas estas culturas Deus continua a trabalhar, e continuam a aparecer no mundo caminhos originais e virginais de justiça, de comunhão fraterna, de capacidade de dar a vida por causas justas. Alguns dirão que são “as sementes da Palavra” que estão nas culturas. Outros dirão que estes são “cristãos anônimos”… A única certeza é que tudo isso é uma confissão de que os caminhos de Deus para a salvação não coincidem bem com os caminhos que nossas teologias apontam. Todos são superados pela aparição do amor de Deus nos processos de humanização, inexplicável para aqueles que acreditam que a graça de Deus está confinada apenas nos limites estreitos de sua mentalidade ou de sua igreja.
3º. Uma tal espiritualidade intercultural e sinodal nos aproxima de uma nova maneira de pensar Jesus como mediação da salvação. A melhor maneira de entender Jesus é entendê-lo como o paradigma perfeito de toda ética salvadora. Sua presença no mundo veio nos ratificar, em nome de Deus, que todos os processos baseados na justiça eram o caminho que agradava a Deus e eram a mediação que realmente nos humanizava. Jesus encarnado não é o princípio da história, nem do amor, nem da justiça, nem da ética… Pelo contrário, é a chave para compreender a história, em todas as suas manifestações de amor, verdade e justiça. A sua existência veio corroborar-nos, em nome do próprio Deus, que o caminho da justiça e do amor é aquele que Lhe agrada, porque é aquele que verdadeiramente humaniza. Esta ratificação do valor do amor e da justiça não é feita por Jesus apenas com palavras. Fê-lo com tais factos concretos, que o levaram a terminar a sua vida no atroz castigo sócio-político da crucificação. Na hora da verdade, Jesus foi executado porque mostrou que o judaísmo não era o único caminho de salvação e, mais ainda, que aqueles a quem o judaísmo condenava eram aqueles a quem o Pai Celestial queria salvar.
4º. Essa espiritualidade nos aproxima de uma ação trinitária de Deus, presente em todas as culturas. Não se trata de equiparar conceitos cristãos a realidades não-cristãs. Trata-se de ver que, quando nos aproximamos da verdade de outras culturas, encontramos elementos que também nos desafiam a aprofundar a presença espiritual trinitária na história, principalmente no interior do ser humano, que desempenha o papel de ser a consciência de tudo o que acontece no seu caminho histórico. As culturas, ao longo da história, foram percebendo a realidade de um ser que é pai ou mãe, a realidade dos espíritos ligados ao masculino ou feminino de Deus, e a realidade dos seres humanos intermediários da divindade, e dos filhos por excelência dela. Não se trata de forçar paralelos entre culturas e cristianismo. Trata-se, antes, de verificar que, quando nos aproximamos das culturas, descobrimos realidades que nos ajudam a aprofundar os nossos próprios dogmas. Por exemplo, todas as culturas buscam que o Ser, em última instância, seja responsável pelo amor, pela justiça e pela verdade, existindo em todos os cantos do universo. Todas as religiões buscam esse Ser em primeiro lugar, e essa busca de alguma forma as unifica. Graças ao poder trinitário que atua na consciência humana, desde o início do mundo, em busca de caminhos de amor, justiça e verdade, Deus salvou o ser humano… E esses caminhos podem ser pensados antes da existência de qualquer tipo de religião. As religiões não são os únicos caminhos de salvação e nem tampouco os primeiros. Antes delas estão as culturas e o mundo do espiritual e, como resultado de tudo isso, há o aparecimento da consciência humana.
5º. Tal percepção espiritual intercultural nos permite esclarecer o papel de Jesus como o “único” mediador da salvação. Como isso é possível, se a cultura com a qual somos confrontados não crê em Jesus? A interculturalidade, quando nos pede para respeitar a verdade do outro, está colocando entre parênteses (não é negar) os atos de fé próprios de cada cultura. O seu papel é confrontar-nos com valores, dar e receber aqueles valores éticos com os quais a história nos enriquece a todos e que não só cristãos e católicos têm. E estes valores éticos devem ser o fundamento de todo o diálogo. Uma vez compreendido isto, torna-se claro para nós o papel de Jesus: Ele é um campeão da prática da justiça, do amor, da verdade, da inclusão, do compromisso com a dignidade humana, do compromisso de reduzir o sofrimento da humanidade, da prática dos direitos humanos, da incorporação dos excluídos e dos pobres nos processos de construção da humanidade. etc. Portanto, a primeira questão diante das culturas não deve ser aquela questão religiosa que indaga sobre formulações teológicas, mas a questão que busca valores, que se forem de justiça, serão somados aos de Jesus. Então saberemos como uma cultura pode acreditar em Jesus, pelos valores que a sua pessoa apresenta, mesmo sem confessá-lo explicitamente como pessoa divina. Este caminho é válido, porque é o mesmo que Jesus seguiu com os seus discípulos: primeiro acreditaram n’Ele como homem de valores e depois, a partir da ressurreição, acreditaram n’Ele como Filho de Deus.
6o. Assim se nos abre um novo caminho ou modelo de evangelização. Compartilhar valores na abertura do intercâmbio significa que o caminho está aberto e pendente da vontade da cultura com a qual dialogamos. Não procuramos impor nada, estamos apenas abertos ao diálogo e ao intercâmbio. Este caminho não é uma evangelização de um tipo diferente do tradicional, mas afinal, evangelização? No exercício deste novo modelo de evangelização, todos perceberemos como, a partir da ressurreição de Jesus, o Pai celeste nos deixou o testemunho de que quem foi levado ao cadafalso para praticar a justiça estava certo. E embora as culturas não o confessem, o fato já está dado. E como o próprio Jesus disse, «quem não está contra nós é por nós» (Mc 9, 40). Uma cultura que pratica a justiça está com Cristo Jesus, explícita ou implicitamente…
Lembremo-nos do episódio evangélico: “Mestre, vimos alguém que expulsou demônios em teu nome e tentamos detê-lo, porque ele não está conosco…” (Mc 9,49). Este versículo contém elementos muito claros: a) Alguém pratica a justiça em nome de Jesus, mas não pertence ao seu grupo religioso; b) Jesus não o condena, nem permite que os seus discípulos o façam; c) É então que ele faz esta grande confissão: quem pratica a justiça não pode estar contra ele, pelo contrário, está com ele… Deste modo, mostra-nos que o único caminho que lhe agrada é o da justiça, um caminho que foi inaugurado desde o início da história, e que se configurou ao longo dela, sob a forma de culturas, e que reconhece que isto é o que definitivamente agrada a Deus. Jesus não desfaz de nenhuma cultura, porque a sua vida, morte e ressurreição não fazem senão dar razão a todas as formas de justiça que existem em todos os cantos do mundo.
7º. Tal espiritualidade nos facilita a compreensão do amor que une o universo. Todas as partículas e todas as ondas das quais a criação é composta vivem em associação mútua, e dessa associação fluíram e continuarão a brotar todas as formas de vida que existiram, existem e existirão. Tudo é o resultado da inter-relação das energias. A “interculturalidade” pertence a esta posição ontológica e existencial de reconhecimento mútuo, respeito mútuo, apreciação recíproca e intercâmbio recíproco, procurando novas formas de vida baseadas no amor, na justiça e na verdade… Não é isto que Deus quer e procura no nosso universo? Não é esta a maior coisa que Jesus veio nos mostrar com sua própria prática? Ou será que Deus quer uma religião única e avassaladora que não reconheça sua presença ativa e transformadora em todas as culturas, ao longo de tantos milhões de anos? Não me parece sensato pensar desta forma!
8º. Pensar a partir da interculturalidade ajudaria a pacificar o mundo. Reconhecemos que a interculturalidade é um verdadeiro desafio para a teologia da Igreja, porque a obriga a repensar sua missão de uma maneira nova. Temos tentado assimilar os valores do Evangelho por dois mil anos e ainda não conseguimos. Mas a experiência mostrou-nos que é preciso dar novos passos, que o Evangelho tem verdades tão profundas que precisam de séculos para serem plenamente assimiladas. Não é tempo de a nossa Igreja dar o grande passo que a humanidade espera, para que todos nos sintamos mais fraternos? Não há escolha senão a fraternidade, pensada não só a nível individual ou grupal, mas também à escala mundial. E isso só é conseguido a partir de posições de igualdade e humildade, de reconhecimento e valorização, deixando para sempre de lado qualquer posição de superioridade. Não é possível vermos que o mundo está desmoronando por falta de fraternidade, e continuarmos a defender posições de superioridade que impedem a fraternidade. É preciso nos decidirmos a dar passos concretos, reais, possíveis, que estão ao nosso alcance, de modo que o mundo se torne mais fraterno! Por que não percebemos o amor universal e a fraternidade como o maior princípio teológico e eclesiológico, diante do qual tudo o mais deve ser relativo?
Alfredo Sampaio Costa, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE