Geraldo De Mori SJ
“Todo escriba instruído acerca do Reino dos céus é comparável a um dono de casa que tira do seu tesouro coisas novas e antigas“ (Mt 13,52).
É no cotidiano que a maioria dos seres humanos experimentam sua existência no espaço e no tempo. Em geral, ele é feito de repetições, das inúmeras atividades e respostas automáticas da vida de cada pessoa, sem muitas vezes pensar no que faz, pois se tornaram como que automatismos, hábitos, quase que uma “segunda natureza”. Por isso mesmo, muita gente não valoriza o cotidiano. Desde a noite dos tempos, para diferenciá-lo das outras ocasiões, consideradas com maior valor, porque nelas algo de importante tinha acontecido, fez-se a distinção entre sagrado e profano, o sagrado correspondendo ao tempo qualificado, muitas vezes marcado por uma visita divina ou uma ação salvífica, e o profano ao tempo aparentemente sem relevância, no qual nada de interessante acontecia. A própria distribuição dos dias da semana, nos calendários conhecidos, é marcada por essa distinção. No calendário cristão, por exemplo, ao domingo, que literalmente significa o Dia do Senhor, que recorda o evento através do qual teve início a nova criação, com a ressurreição de Jesus, que é o evento salvífico por excelência, se seguem os outros seis dias, que a língua portuguesa “dessacralizou”, pois deu-lhe o significado da “ferialidade”, ou seja, da cotidianidade sem importância. Nas outras línguas, ao invés de dizer segunda, terça, quarta, quinta e sexta feira, se nomeia o dia em questão com o nome de uma divindade, que muitas vezes corresponde a um objeto celeste, como a lua (em castelhano lunes), o planeta marte (em castelhano, martes) etc. A língua portuguesa só não secularizou o sétimo dia, a saber, o sábado, que no calendário judaico, era o dia do repouso do Senhor, no qual também os humanos e os animais deveriam repousar. Essa origem longínqua da distinção entre o cotidiano e as ocasiões dignas de serem rememoradas parece não ter mais sentido no mundo atual.
De fato, nas sociedades dominadas pela lógica da modernidade, a distinção entre sagrado e profano, mais que remeter-se à separação entre dias que recordam eventos salvíficos que demandam o culto e dias que reenviam ao dia a dia anônimo e sem significado particular, se definem pela otimização máxima do uso do tempo e sua transformação em dinheiro, que preside à lógica do mundo do trabalho desde o início da industrialização e da transformação do mundo urbano. Embora os trabalhadores, através de suas lutas, tenham conseguido assegurar o descanso semanal, a sociedade da produção e do consumo não conhecia descanso. E na época da precarização do mundo do trabalho, como no Brasil contemporâneo, mesmo quem tem direito ao descanso semanal, está quase que o tempo todo “ligado”, pois a hiperconectividade dos smartphones, aplicativos, plataformas e redes sociais quase que inviabilizam o merecido repouso, tão valorizado nas sociedades antigas, bem atestado no sábado judaico e no domingo cristão. O repouso figurado no sábado judaico era para “santificar” o dia do Senhor, ou seja, para dedicar-se ao culto, marcado pela escuta da Palavra divina. No mundo cristão, a “santificação” do domingo estava relacionada à celebração da “memória do Senhor”, através da Eucaristia, que não só evocava a última ceia de Jesus e o sentido que deu à sua paixão, ou seja, a seu corpo e sangue entregues, mas também ao banquete escatológico, antecipado na fração do pão, figura de uma partilha que apontava o reino definitivo, onde ninguém mais passaria fome e a justiça enfim reinaria.
A supressão da distinção entre sagrado e profano nas sociedades modernas não leva necessariamente à supressão da necessidade de qualificar alguns momentos da existência, seja pessoal, seja coletiva. Várias comemorações civis buscam substituir-se à necessidade de dar sentido à vida coletiva. Algo parecido acontece com a história pessoal de cada um. No âmbito religioso, as igrejas cristãs buscaram se adaptar, oferecendo atividades diversas, seja no dia do Senhor, seja em outros dias. Para além dessas datas presentes nos calendários civis, eclesiais e pessoais, o próprio dia a dia vai demandando e oferecendo oportunidades de sentido. Provavelmente a maioria das pessoas descobrem nele as ocasiões “favoráveis”, que no grego bíblico, corresponde aos “kairós”, ou seja, o tempo qualificado, em que “Deus visita” seu povo, seja manifestando seu poder e sua glória, seja libertando-o das inúmeras ameaças pelas quais passava. Esses “kairós” não são apenas objeto de “memória ritual”, que remete a um passado que não mais se torna realidade. Eles se atualizam na existência da comunidade que deles fazem memória. O mesmo acontece na existência pessoal de quem crê. O ato de crer é o “kairoi” por excelência, pois transforma não só olhar, mas toda a vida de quem crê, pois é o ato pelo qual o que aconteceu no passado, a saber, a manifestação da glória divina ou sua atuação salvífica, torna-se presente na vida de quem crê, torna-se “kairoi”.
E a vida de quem acredita, como tão bem expressam os escritos do Novo Testamento, é uma nova criação, ou seja, tudo passa a ser habitado pelo novo, e o novo por excelência, é a vitória do Ressuscitado sobre as forças da morte e da injustiça. Quem crê no Cristo, passa a participar, já na vida presente, de sua vitória sobre aquilo que no cotidiano, aparentemente, parece sem relevância ou significado particular. Isso não quer dizer que o cristão não necessita mais de “momentos favoráveis” que o remetam ao “kairoi” por antonomásia que é a ressurreição de Jesus, celebrada no dia do Senhor. Esses momentos, certamente importantes, devem permear toda a existência de quem acredita, sobretudo os momentos tidos como sem importância, pois aparentemente não são marcados por nada de relevante ou significativo. Por isso, quem se diz cristão é chamado a descobrir no cotidiano as “passagens de Deus” por sua vida. E Deus passa de muitas maneiras. Nem sempre, porém, se percebe sua passagem, pois, o cotidiano é às vezes tão inóspito ou sem graça que parece impossível encantar-se com ele. Nele acontece o ciclo cósmico e biológico da existência, ou seja, a passagem das estações e o passar dos dias, feitos, em certas ocasiões, de novidades e descobertas, em outras, de tarefas repetitivas e cansativas, em outras, de monotonia e completa apatia. Como abrir uma fresta na janela do cotidiano para deixar entrar a luz do “novo”, no qual “existimos, nos movemos e somos”, como tão bem diz Paulo em At 17,28? Como educar o olhar, os ouvidos, o olfato, o paladar e o tato para, no cotidiano, como o escriba versado no reino dos céus, saber descobrir coisas novas e velhas (Mt 13, 52)? Muitos que se dizem cristãos não conseguem mais deixar-se surpreender pelo “kairoi” no qual acederam à fé, ou seja, vivem o cotidiano sem nenhuma capacidade de enxergar nele a passagem de Deus, não conseguem mais maravilhar-se diante de um azul celeste, de uma tormenta furiosa ou de um céu estrelado. Tampouco conseguem descobrir numa mãe que carrega um bebê, num casal de idosos que passeiam de mãos dadas, num jovem que faz de tudo para dizer que existe, num trabalhador que executa fielmente sua tarefa, os vestígios do “kairoi”. Segundo os cientistas, o universo foi se gestando em bilhões de anos, a maior parte deles feita de repetições infinitas do aparente sem sentido do cotidiano. O Espírito, que acompanhava todo esse processo, é o que abre os sentidos, para ver nele sua passagem.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE