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Entre sonhos e memórias, o cinema de FELLINI

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Graziela Cruz

As memórias e os sonhos sempre foram recursos riquíssimos para o autoconhecimento e para o exercício psicanalítico. E o que dizer quando esses poderosos recursos se tornam a matéria-prima de um gênio do cinema? Pois foi isso o que aconteceu com Federico Fellini, considerado por muitos como o maior diretor cinematográfico italiano e um dos mais significativos no cenário mundial. Fellini é um daqueles artistas que, volta e meia, devemos revisitar para apurar nosso exercício apreciativo. Se, por meio de seus filmes, somos levados a mergulhar em seus próprios sonhos e memórias, porque não dizer que suas obras fazem o mesmo conosco: nos remetem a sons e imagens oníricos e a lembranças de outros tempos, outros lugares físicos ou psicológicos.

Falar do cinema de Fellini é falar sobre como ele resignificou suas lembranças da infância e juventude e seus sonhos religiosamente anotados em um caderno, transfigurando-os em filmes magistrais. O cinema se tornou, para o diretor, um espaço reparador de traumas da infância, de interpretação das fantasias e desejos, de reconciliação com situações e pessoas de tempos idos. Em seus filmes, Fellini brincou com limites entre real e imaginário, ficcional e biográfico, alta e baixa cultura, cinema de autor e de entretenimento.

Nascido em Rimini, cidade litorânea da costa adriática, Fellini viveu a infância em uma tradicional família italiana, com seus pais e irmãos. O pequeno Federico foi profundamente influenciado pelo circo e identificou-se com os palhaços em sua infância.  Fellini deixou Rimini quando tinha 17 anos, mas as fantasias, os palhaços, os personagens, as emoções, o relacionamento com os pais e o ambiente circense não se desligariam dele jamais. O diretor utilizou as formas artísticas popularescas que povoaram sua vida na cidade natal para fomentar sua criatividade e desenhar os contornos de sua obra. Além do circo, os jornais humorísticos e os quadrinhos também serviram para fertilizar a capacidade criativa do cineasta.

Em seu segundo filme, Os boas vidas (1953)[1], –  o primeiro a ter sucesso de público e crítica –  a narrativa quase autobiográfica se inspira no Fellini jovem ao lado dos amigos em sua cidade natal, Rimini, a qual deixaria para se aventurar e ser bem sucedido em Roma, anos mais tarde. As lembranças da cidade natal também são a fonte de inspiração para vinte anos mais tarde filmar Amarcord (1973) que quer dizer “eu me lembro” no dialeto da Emilia-Romagna, região onde fica Rimini. Amarcord retrata uma província italiana nos anos do fascismo que reinou na Itália quando Fellini era criança.

Aliado às experiências infanto-juvenis, é o universo onírico que se torna fonte profícua de inspiração para Fellini. Se o neorrealismo deu o tom de suas primeiras realizações, a partir de A doce vida (1960) Fellini rompe com o movimento e funda um estilo próprio, que poderia ser definido como “realidade simbólica”, na qual o cineasta mescla realidade e sonho, quase sempre não deixando claro onde termina um e começa o outro. A importância dos sonhos pode ser percebida na forma como Fellini estrutura e desenvolve suas narrativas e personagens, e desenha as molduras cenográficas. Poucos artistas tiveram seu trabalho tão vinculado às leituras psicanalíticas quanto Fellini, influenciadas por sua relação terapêutica com o psicanalista junguiano Ernst Bernhard e pelas leituras de Jung. Aconselhado por Bernhard, o diretor fez registros de seus sonhos durante 22 anos. A influência onírica e a interpretação psicanalítica são facilmente percebidas a partir de 8 ½ (1963), e segue com Julieta dos Espíritos (1965), Fellini Satyricon (1969), Amarcord (1973), O Casanova de Fellini (1976), A Cidade das Mulheres (1980), entre outros.

É no filme 8 ½, que Fellini começa a explicitar a influência dos sonhos em seu trabalho, aliada às memórias da infância e adolescência. No filme que muitos consideram sua obra-prima, ele reúne as imagens oníricas e as memórias de infância e juventude para criar a personagem Guido Anselmi, interpretado por Marcello Mastroianni. Guido é o alter ego de Fellini, um cineasta passando por uma crise de criatividade. As dificuldades de Guido são as mesmas de Fellini na realização do filme. Ele precisa terminar o trabalho, mas não tem novas ideias nem motivação. Somado a isso, ele parece viver uma crise de meia-idade, com conflitos no casamento, desejos frustrados e incapacidade de compreender ou de aceitar os desejos mais genuínos. Guido (e Fellini) parecem desejar a liberdade pura, simples e ingênua da infância.

Na opinião de Fellini, expressa em diversas entrevistas, o cinema conta seus mundos, suas histórias e seus personagens por meio de imagens. Sua expressão é figurativa, como a dos sonhos. “O sonho não nos fascina, assusta, exalta, angustia, não nos alimenta com imagens?” (FELLINI, 2011, p.146) pergunta o cineasta, justificando que a palavra e o diálogo, em sua opinião, servem mais para informar, para se permitir que se siga de forma racional a história e para dar-lhe um senso de verossimilhança, enquanto a linguagem visual do sonho confere ao cinema a sensação de irrealidade do cinema.

Fellini descrevia seu método criativo como “expressivo-artesanal”, afirmando que a invenção para suas narrativas se dava a partir de suas experiências, memórias, esperanças, “uma mistura de emoções pessoais, alterações, as cores da escuridão que vivem em mim” (FELLINI, 2011, p.24). Cores essas as mais variadas, sem dúvida, que coloriram o universo do artista italiano, atribuindo-lhe um adjetivo maiúsculo –  felliniano –  que o coloca entre os maiores na história da sétima arte.

 

Graziela Cruz é professora no departamento de Filosofia da FAJE e doutoranda em Cinema pela UFMG

 

Referência bibliográfica

FELLINI, Federico. Fazer um filme. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011

[1] O primeiro filme de Federico Fellini foi “Mulheres e luzes”(1950), co-dirigido com Alberto Lattuada, que não obteve sucesso comercial e reconhecimento da crítica. Nesse filme, Fellini já revela seu amor pelo teatro de variedades e pelos artistas mambembes, que apareceriam em outros trabalhos futuros.

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