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Escutar, acompanhar, amar. Um percurso repleto de gratidão.

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Queremos com estas simples reflexões evocar nossa vida espiritual na sua riqueza e complexidade. Trazer de volta sentimentos vividos, memórias fortes de experiências marcantes de encontros e desencontros, saudades e esperanças. Apesar de defendermos que nossa vida espiritual é “nossa”, “pessoal”, se queremos ser sinceros temos que admitir que não vivemos nossa vida sozinhos. E que o que dá sabor, gosto, prazer à vida é que ela é vivida com muitas outras pessoas! Na nossa tradição cristã desde tempos longínquos encontramos a figura dos mestres das escolas filosóficas gregas, seguidos pelos “Padres e Madres do deserto”, pelos “staretz” russos, pelos “gurus” do Oriente, e que hoje conhecemos como acompanhantes ou orientadores espirituais. Eles se tornam companheiros e companheiras imprescindíveis no caminho.

Se quiséssemos escolher três palavras para evocar atitudes fundamentais básicas para nossa vida espiritual, poderíamos tomar estas: Escutar – Acompanhar – Amar. Poderíamos inclusive dizer que a última (ou seria a primeira?) – AMAR – engloba as outras duas? Só ama de verdade quem sabe escutar e está disposto(a) a acompanhar! E não pode acompanhar de verdade quem não escuta o outro autenticamente!

Essas reflexões terão um efeito diferenciado conforme o público que as vai ler. Para aqueles e aquelas que já provaram de uma orientação espiritual, seja como acompanhantes ou acompanhados, terá a marca de uma renovação nesta importante missão. E para quem ainda não teve essa oportunidade, quiçá seja um estímulo para abrir-se à importância que cada uma destas 3 palavras tem na vida de todos nós!

Comecemos pelo ESCUTAR.

Começando pelo “escutar” 

Creio que se há algo importante a ser levado a cabo por nós, é aprimorar nossa capacidade de escuta. Pode vir em nosso socorro o famoso texto de Rubem Alves intitulado “Escutatória”[1].  Sigamos alguns trechos e os comentemos oportunamente.

“Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil […]

Vivemos em um mundo onde todo mundo quer falar e não somente. Quer que a “sua” fala prevaleça sobre as demais. Já “aprender a escutar” não parece ter muita atração realmente num planeta onde a grande maioria já se considera “preparados e preparadas” para falar sobre tudo sem precisar ouvir ninguém.

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.” Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor […]”

Quantas conversações transformam-se em disputas onde só um alcança a vitória! Não aguentamos ouvir o que a outra pessoa diz sem interpor imediatamente nossas ideias!

Estamos muito longe da “liberdade interior” e da “humildade de coração” do discípulo e da discípula que quer realmente aprender do outro um ensinamento para a vida!

É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades.

Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado”.

Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.” Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

Uma das piores experiências que podemos ter na vida é nos abrirmos a alguém de corpo e alma e notar que a pessoa não está nos escutando em profundidade. As marcas ficarão gravadas para sempre, afetando negativamente futuras tentativas de abertura a um familiar, a um amigo e inclusive a Jesus e a Deus Pai.

“Quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a ideia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa – quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto…” (Rubem Alves, O amor que acende a lua, pág. 65.) 

Começar a ouvir coisas que não ouvíamos! Eis o desafio e a meta diante de nós na vida espiritual e no trato com as pessoas!

 

Ouvir, ouvir-se: as audições que dão sentido à existência

Só tomamos consciência de si através do sentir, experimentamos nossa existência pelas ressonâncias sensoriais e perceptivas que não cessam de nos atravessar.

Sentir é ao mesmo tempo desdobrar-se como sujeito e acolher a profusão do exterior.

Só aquilo que faz sentido, de maneira ínfima ou essencial, penetra o campo da consciência, suscitando assim um instante de atenção[2].

O homem abre uma passagem na sonoridade incessante do mundo ao emitir sons ou provocando-os por suas palavras, por seus feitos e gestos. Mesmo fechando os olhos, os sons circunstantes o desguarnecem quando ele pretende se defender deles, e eles superam os obstáculos fazendo-se ouvir, indiferentemente da intenção do indivíduo. Os ouvidos sempre se abrem ao mundo, “não respeitando nem porta nem clausura alguma, como de fato acontece com o olho, com a língua e com outras aberturas do corpo. Por isso me esforço para que sempre, todas as noites, continuamente, eu possa ouvir, e através do ouvir, perpetuamente aprender”[3].

Diante da palavra escutada, penetrado por ela não obstante a sua vontade, o homem está sempre em posição de acolhida ou de recusa. Ele entra ou não em ressonância. O som é mais enigmático que a imagem, já que ele se dá no tempo e no fugaz, aí onde a visão permanece impassível e explorável. Para identificá-lo é necessário permanecer na escuta, e ele não se renova permanentemente, e desaparece no exato instante em que é ouvido[4].

A sonoridade do mundo lembra sua contingência, lá onde os outros sentidos são dóceis a novas solicitações: rever uma paisagem de outono ou um pôr de sol sobre a colina, degustar hoje e amanhã o sabor de um prato ou de um vinho, recorrer ao mesmo perfume, acariciar novamente a face da pessoa amada. O som se perde e foge ao nosso controle bem como à vontade sua de ouvi-lo novamente, salvo através do recurso a instrumentos técnicos que o controlam e o difundem à vontade[5].

Ser ouvido significa ser compreendido. A audição penetra para além do olhar, ela imprime um relevo aos contornos dos acontecimentos, povoa o mundo com uma soma inesgotável de presenças, habita as existências defraudadas. Ela sinaliza o sussurro das coisas aí onde nada seria decifrável de outro modo. O som, assim como o odor, revela o que está para além das aparências, forçando as coisas a testemunharem suas presenças inacessíveis ao ouvido.

Ao escutar o relato da vida de alguém, na perspectiva de poder participar dessa vida oferecendo o ouvido e o coração, fazemos a experiência de comunhão e solidariedade com o outro. O que terá um impacto ainda maior quando se tratar de “dar ouvidos” aos clamores dos mais frágeis e descartados da nossa sociedade.

Querer ouvir o outro, desejar profundamente ouvir a si mesmo, sempre no intuito de penetrar ainda mais profundamente no sentido que reveste a nossa existência e as dos nossos irmãos e irmãs, faz-nos encarnar a atitude existencial fundamental do próprio Cristo, homem-para-os-demais, Encarnação do Amor inesgotável de Deus por toda a humanidade sofredora.

Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Fonte: http://rubemalves.locaweb.com.br/hall/wwpct3/newfiles/escutatoria.php . Acesso em 19/11/2021.

[2] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, Petrópolis: Vozes 2016, 27.

[3] F. Rabelais, «Le tiers livre », Ouvres Completes. Paris: Seuil 1979, 429.

[4] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, 129-130.

[5] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, 134.

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