Márcia Eloi Rodrigues
Quando pensamos em tudo o que está acontecendo com o meio-ambiente, o descaso e a destruição frequente das nossas florestas e sua biodiversidade, será que nos perguntamos: o que tudo isso tem a ver comigo? Qual a minha responsabilidade? Bem, se formos pessoas desconectadas com o mundo em que vivemos, poderíamos dizer: “nada tem a ver comigo!” Mas isso é uma falácia, pois a questão ecológica tem a ver com nossa vida, sim. E muito! O que acontece é que muitos cristãos vivem uma fé intimista e autocentrada e esquecem que fazem parte da Criação. Nos dois textos do livro de Gênesis que falam da Criação (1,1–2,1 e 2,4-25), é clara a nossa interdependência com o mundo criado, somos criados como as demais criaturas pelas mãos de Deus. Mas não só isso. Somos corresponsáveis pela Criação divina como representantes do Criador, únicos dentre todas as criaturas criados “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26a) e, por isso, capazes de reconhecer-se diante de Deus e de responder ao seu mandado de “dominar” o mundo criado (Gn 1,26.28). Contudo, saber disso não é suficiente para atendermos diligentemente o mandato divino de cuidar da obra criada. Muitos elementos devem ser considerados. Apresento duas coisas, necessárias e complementares: entender o que no texto bíblico significa “dominar” e cultivar uma espiritualidade sapiencial.
No texto da Criação, em Gn 1 e 2, lemos que Deus ao criar o ser humano lhe dá um propósito, seguido de um mandato: “Façamos um ser humano, à nossa imagem e segundo nossa semelhança. Que ele domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais da terra e tudo o que rasteja pela terra” (Gn 1,26)[1]. Esse desejo é reafirmado mediante o mandato ao ser humano: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo ser vivo que rasteja pela terra” (Gn 1,28). Esse mandato de “dominar” lido de forma desvinculada do contexto narrativo e da cultura da qual surgiu o texto, pode gerar uma compreensão equivocada do papel que o ser humano deve desempenhar em seu “governo” do mundo criado. O povo daquela época vivia de modo diferente da nossa realidade hoje. O texto bíblico foi escrito no contexto de um Israel seminômade, que se tornou posteriormente sedentário, cujas atividades agropecuárias eram realizadas de forma modesta e consciente, deixando à natureza tempo para repor seus recursos[2]. Não fazia parte do horizonte cultural da época esse desejo desenfreado e inconsequente por lucro que move o agronegócio. Atitude que se baseia numa hermenêutica equivocada, que se utiliza do texto bíblico da Criação como justificativa para a dominação e exploração dos recursos naturais[3].
Uma hermenêutica acertada de Gn 1,26.28 considera esse mandato vinculado à ideia da Criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26a). Esse Deus que cria o mundo em harmonia, em que cada elemento do criado é bom e tem seu papel na ordem do mundo, para fazer dele um lugar belo e habitável. Assim, o ser humano é interpelado a cuidar da Criação com o mesmo cuidado dispensado por Deus.
E mais. Apenas compreender o texto bíblico é insuficiente para a vivência do mandato divino de cuidar da “casa comum”, assim denominado pelo Papa Francisco. É preciso, também, o cultivo de uma espiritualidade sapiencial, que contemple o mundo criado e nele encontre seu Criador, que reconheça a sacralidade da Criação inteira. No livro dos Salmos encontramos várias passagens que apontam para esse caminho. Um deles, o Sl 8, nos remete ao texto de Gn 1. “Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas, as coisas que criaste, que é o ser humano, para dele te lembrares, o filho do homem, para que o visites? Tu o fizeste pouco menor que os anjos, de glória e de honra o coroaste e o constituíste acima das obras de tuas mãos” (v. 4-5). O salmista, nesse trecho, expressa um senso profundo de humildade diante da Criação e do papel ocupado pelo ser humano. A pequenez do ser humano, comparada à vastidão e grandiosidade das obras de Deus, contrasta com a honra de ter sido coroado e designado guardião da Criação. Tal posição implica uma responsabilidade singular de cuidado e respeito para com a “casa comum”.
Assim, a espiritualidade bíblico-sapiencial convoca o ser humano a uma relação harmoniosa com o mundo criado. Ser feito “à imagem e semelhança de Deus” implica assumir uma postura de respeito, um compromisso com a sustentabilidade e a preservação da vida em todas as suas formas. Este chamado é um lembrete constante de que nossa fé deve transcender o intimismo e direcionar-se ao serviço da Criação, reconhecendo-a como expressão divina que merece ser honrada e protegida. Portanto, cultivar uma espiritualidade que valorize e respeite a natureza não é apenas uma escolha ética, mas um modo de viver a fé em conexão com a realidade que nos cerca.
Entender o mandato divino de “dominar” a Criação não é, portanto, uma autorização para exploração sem limites. Pelo contrário, este domínio se traduz em um cuidado amoroso e responsável, no qual se reflete a própria natureza de Deus que, ao criar, viu que “tudo era bom”. Quando percebemos o domínio como um chamado ao cuidado e à preservação, podemos reformular nossa relação com o mundo natural, deixando de lado o desejo de extrair em excesso e passar a agir com cuidado e responsabilidade.
Essa perspectiva nos desafia a uma profunda transformação interior e urgente, possível mediante o cultivo de uma espiritualidade sapiencial que nos permita contemplar a Criação com olhos de reverência, que reconheça a interdependência de todos os seres desde a vida microscópica até as maiores galáxias. Em vez de uma espiritualidade isolada e autocentrada, somos chamados a cultivar uma espiritualidade inclusiva e ecológica, que confirma nosso lugar no grande “tecido da vida” e nossa responsabilidade por ele. Nesse sentido o cuidado com a Criação é um imperativo ético e espiritual, não apenas uma preocupação ambiental e, por fim, a nossa interação com a natureza se torna uma prática espiritual em si mesma, uma expressão do nosso amor e gratidão pelo Criador.
Márcia Eloi Rodrigues é professora e pesquisadora no departamento de Teologia da FAJE
[1] Bíblia Sagrada. 2.ed. Brasília: CNBB, 2019.
[2] ANDRADE, Aíla L. P. Sustentabilidade: a consciência ecológica como paradigma de uma nova hermenêutica bíblica. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 55, n. 2, p. 391, 2023. Disponível em: https://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/5311. Acesso em: 29 out. 2024.
[3] ANDRADE, Sustentabilidade, p. 391.
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