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Exegese bíblica e contemplação inaciana: desafios e perspectivas

Alfredo Sampaio Costa SJ

No Brasil, o mês de setembro é particularmente dedicado à Bíblia, como estamos habituados a viver nas nossas comunidades paroquiais. Pensei neste mês em aproveitar essa aproximação afetiva à Palavra para refletir sobre o uso da Bíblia na caminhada dos Exercícios Espirituais, nas suas diversas modalidades. Pois bem: como podemos utilizar os resultados obtidos pela exegese bíblica atual ao nos dedicarmos à oração a partir dos textos bíblicos, por exemplo, durante nossos retiros espirituais? Não seria uma distração ou um refinamento acadêmico que desviaria do objetivo de um encontro orante com o Senhor? Por outro lado, ignorar tais contribuições não transformaria a oração em um mergulho intimista subjetivo onde cada um irá criando suas próprias interpretações, afastando-se daquilo que o texto quer apresentar?

Gostaria de partilhar com vocês um excelente artigo publicado na revista Manresa anos atrás (2010)[1] onde o autor procurava refletir sobre as interpretações propostas pela exegese moderna e como podemos nos apropriar de seus resultados para a contemplação dos mistérios da vida de Cristo tal como se propõe nos Exercícios.

Ao nos aproximarmos de forma orante da Palavra, com intenção de nos deixarmos penetrar e transformar por ela, aqueles e aquelas que tivemos acesso a uma formação bíblico-exegética atualizada podem se sentir incômodos, reféns de uma aparente oposição: ler (rezar) a Palavra com as ferramentas histórico-críticas buscando o sentido objetivo que o autor quis dar a seus textos ou deixar essa gama de interpretações e partir logo para um encontro pessoal com a Palavra que mostre a relevância daquela Palavra para as necessidades e perguntas do homem de hoje. Será possível não renunciar a nenhuma das alternativas, integrando-as equilibradamente na nossa oração? Ou seremos forçados a abraçar uma em detrimento da outra? Essa dificuldade é real e atormenta muitos exercitantes com formação acadêmica e que por tal razão encontram dificuldades especiais em abandonar-se à uma oração mais afetiva e “desinteressada”. Muitos também quando tomam um texto bíblico para rezar sentem-se forçados a fazer da oração um “tirar mensagens para a vida” (marcadamente moralizantes) mais do que viver um encontro transformador com o Senhor.

Inácio preocupa-se que a contemplação dos Mistérios da Vida de Nosso Senhor seja preparada por um momento de “compor o lugar” (cf. EE 47). O Pe. Géza, nas suas notas aos Exercícios Espirituais, explica o que se pretende com essa composição de lugar: “A composição quer colocar o exercitante numa situação existencial, penetrando, por meio de imagens, na realidade divina, introduzindo-o, por meio do experimental visível, no mundo sobrenatural, invisível. É preciso que o exercitante, durante a oração inteira, se conserve nesta “ambientação” existencial, profunda, e que faça todas as suas reflexões dentro desta vivência global”. Trata-se de um exercício imaginativo, muito pessoal, mas cremos que ele não poderá ser desconectado daquilo que o texto apresenta.

Buscar o sentido dos textos a partir do que seu autor quis dizer é fundamental para não fazer da contemplação dos Mistérios da Vida de Cristo uma aventura fantasiosa sem pé na realidade, resvalando em um subjetivismo intimista sem inferência na realidade do mundo ao qual queremos ser enviados.

O documento da Pontifícia Comissão bíblica em 1993, conhecido como “A interpretação da Bíblia na Igreja” diz a respeito da oportunidade de usar os resultados da exegese moderna hoje:

“O método histórico-crítico é o método indispensável para o estudo científico do sentido dos textos antigos. Uma vez que a Sagrada Escritura, enquanto “palavra de Deus em linguagem humana” foi composta por autores humanos em todas suas partes e fontes, sua justa compreensão não somente admite como legítima, mas requer a utilização deste método” (Parágrafo introdutório).

Indispensável, certamente, para o estudo científico do sentido dos textos. Mas ao fazermos os Exercícios Espirituais, onde não se trata disso, continua sendo indispensável, ou mesmo oportuno, lançar mão de tais resultados exegéticos? De que modo pode ajudar a uma melhor experiência? Ou poderá prejudicar? De que dependerá isso? Creio que de muitos fatores, como por exemplo, da capacidade de compreender dos exercitantes, do modo de expor a matéria por parte de quem dá os Exercícios, das motivações que cada um traz para viver a experiência etc.

Trata-se de uma boa discussão onde certamente encontraremos todo tipo de opinião, desde defensores até quem rejeite totalmente tal utilização.

Já o próprio documento citado anteriormente, em continuação, afirma que é preciso conhecer os limites de tal abordagem, uma vez que ela “se restringe à busca do sentido do texto bíblico nas circunstâncias históricas de sua produção e não se interessa por outras possibilidades de sentido que se manifestam no curso das épocas posteriores da revelação bíblica e da história da Igreja” (A 4). Como qualquer ferramenta a ser utilizada, terá sua utilidade, mas não servirá para qualquer oportunidade. Será preciso ver a oportunidade ou não de lançar mão de tais recursos.

O critério será sempre “o que se busca”, “o que pode mais aproveitar”, “o que mais ajuda”, sempre pensando no “auditório” a quem iremos nos dirigir.  Mas partindo do fato objetivo que de um modo ou de outro nos deparamos com um texto escrito, é possível tecer algumas considerações:

A atenção ao sentido literal do texto, isto é, ao que o autor tentou expressar em seu escrito e pretendeu comunicar aos seus leitores e à sua comunidade no contexto concreto em que lhe tocou escrever não pode ser o único a ser buscado ao nos aproximarmos do texto bíblico. Pensemos nas consequências desastrosas disso: se assim fosse, pela enorme erudição que tal trabalho demanda (conhecimento do contexto em que cada autor viveu, conhecimento das línguas antigas em que foi escrito, estudos sobre a composição dos textos e suas etapas etc.), a interpretação bíblica ficaria exclusivamente em mãos de expertos e de raros iniciados em estudos tão profundos. Se isso já não bastasse, podemos nos perguntar se, em muitos casos o sentido literal garantido pela exegese, sobretudo em textos do Antigo Testamento, tem algo a dizer ao cristão de hoje. Pode resultar irrelevante.

É possível alcançar uma “interpretação literal” de um texto qualquer, e mais ainda, de uma passagem da Sagrada Escritura? O Cardeal Ratzinger, em seu profundo estudo sobre a relação entre o magistério da Igreja e a exegese, acertadamente afirma que no campo exegético, “a mera objetividade do método histórico não existe. É simplesmente impossível excluir totalmente a filosofia, ou seja, a pré-compreensão hermenêutica”[2]. Todo leitor, também o exegeta, ao se aproximar ao texto inspirado, ainda que tenha em mente uma “objetividade científica”, inevitavelmente o fará com uma pré-compreensão da qual não pode se despojar.

Seria minimizar extremamente a importância da exegese bíblica reduzi-la a uma perseguição sem fim a um sentido primordial desejado pelo autor inspirado como sendo a finalidade última de tão exigente trabalho de pesquisa. Afirma a respeito J. M. Caballero: “A exegese católica não tem direito de se assemelhar a uma corrente de água que se perde na arena de uma análise hipercrítica. Tem que cumprir na Igreja e neste mundo uma função vital, a de contribuir para uma transmissão mais autêntica do conteúdo da Escritura inspirada”[3].

Em busca de um sentido “pleno”, prolongamento do sentido literal:

Toda vez que nos aproximamos à Sagrada Escritura com a devida reverência, desejosos de viver um genuíno encontro repleto de afeto com o Senhor, importa que nos apresentamos diante do Senhor com um coração sedento de perscrutar, no texto que tomamos para a oração, tudo o que o Senhor nos quiser revelar. Quem quer ser verdadeiramente discípulo e discípula não se contentará com um sentido meramente literal. Quer sempre conhecer mais e amar mais!

Da mesma forma, aquele ou aquela que hoje quiser dar exercícios deverá conhecer todas as outras possibilidades de hermenêutica para desenvolver uma exegese espiritual relevante dos textos bíblicos, que não trate somente do que o texto quer dizer, mas principalmente do que Deus quis transmitir através desse texto. É o que se chama de “sentido pleno”.

A Bíblia como Palavra humana divinamente inspirada implica consigo uma “abertura de sentido”. A dimensão divina da Bíblia acrescenta um “plus” de sentido à sua dimensão humana. O autor bíblico falou somente para os homens de sua geração. Eram os únicos que estavam no seu horizonte humano. Ao contrário, na intenção divina estavam os homens e mulheres de todos os tempos. Nós somos os destinatários das profecias de Isaías, Oséias e Jeremias e temos o direito de aplicá-las a nosso tempo e circunstâncias. Ao fiel o que lhe interessa ultimamente não é o que disse Paulo ou Lucas, mas o que Deus quer dizer a ele agora. Ainda que o conhecimento da intenção divina esteja mediado pelo sentido que o autor quis dar, não se esgota nele. É claro que não se trata de buscar um à revelia do outro. O sentido pleno (para hoje, para a Igreja, para cada pessoa) nunca pode ser afirmado contra o sentido literal. Deus nunca quererá utilizar um texto de Isaías para nos comunicar uma mensagem contrária ao que Isaías tinha em mente ao escrever. Por essa razão o sentido literal deve seguir sendo sempre uma consciência e um controle sobre os outros sentidos possíveis.

Descobrir a intenção original do autor cumpre funções muito importantes: ajuda a descartar pelo menos aqueles que sejam contraditórios e irreconciliáveis. Por mais flexíveis que sejamos, um texto não pode significar qualquer coisa que lhe queiramos fazer significar. Podemos dizer que o sentido pleno é um prolongamento do sentido literal, na mesma direção. O autor enxergou o sentido de seu escrito a uma certa luz. Depois pode vir um leitor à plena luz do dia e descobrir sentidos ocultos no texto, que o próprio autor não captou. Se perguntássemos ao autor se é isso que ele quis nos dizer, responderá que não pensou nisso explicitamente, mas que está muito em linha com o que quis dizer.

Para refletir: Como podemos crescer na nossa formação bíblica, para conhecermos mais profundamente a riqueza da Palavra que nos foi transmitida? Quando rezamos com a Bíblia, aproximamo-nos dela com a devida reverência que merece como texto inspirado?

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisdor no departamento de Teologia da FAJE

 

[1] Juan Manuel Martín-Moreno, La nueva hermenéutica y el uso de la Biblia en los Ejercicios, Manresa 82 (2010) 325-339.

[2] J.  Ratzinger, “La relación entre el magisterio  de  la  Iglesia  y  la  exégesis”,  em  AA.  VV., Escritura e interpretación. Los fundamentos de la interpretación bíblica, Madrid, Palabra 2003.

[3] J. M. Caballero, Hermenéutica y Biblia, Estela: Verbo Divino 1994.

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