Geraldo De Mori SJ
“Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gn 224).
Além de profanarem o nome de Deus e manipularem os símbolos religiosos mais sagrados de parte importante da população brasileira, como o Círio de Nazaré, a Festa de Aparecida e cultos religiosos de igrejas evangélicas, os grupos que apoiam a candidatura do atual Presidente à reeleição, também manipulam o imaginário que está na origem da existência de cada ser humano: a família. Com efeito, como diz João Grilo, no Auto da Compadecida, o ser humano “não é filho de chocadeira”, ou seja, para que exista, é necessário que seja gerado, dado à luz e criado no seio de uma família, na qual vai aprender o que há de mais essencial para sua sobrevivência, como comunicar-se, realizar as várias atividades que o tornarão pouco a pouco autônomo, assumir valores, tornar-se responsável por seus atos, respeitar o outro e saber conviver com o diferente.
Todas as culturas possuem narrativas que, após falarem da origem de tudo o que existe, tentam também explicar como surgiu o ser humano. Algumas evocam um casal original, outras um andrógino que é separado em dois, dando origem à diferença de sexos. O texto da narrativa bíblica de Gn 2 diz que Deus modelou do barro um humano, soprando-lhe o hálito vital e colocando-o num jardim, do qual deve cuidar. Apesar da autoridade que goza sobre todos os animais do jardim e de poder se alimentar de quase todas as frutas que ele produz, esse humano original se sente sozinho. Deus o mergulha então num sono profundo e de seu lado tira aquela que será sua “ajuda”, mas que, ao vê-la, Adão diz ser “osso de seus ossos, carne de sua carne”. Ele a chama de mulher e diz que o “homem deixará pai e mãe para se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne” (Gn 2,23-24). Nessa narrativa simples encontra-se aquilo que os teólogos medievais identificaram como já sendo a primeira instituição do sacramento do matrimônio, que dá origem à família. É interessante que nesse relato reina uma completa harmonia entre o casal original. Somente depois da “queda”, narrada no capítulo 3 do Gênesis, é que a harmonia cede o lugar ao que o autor do texto chama de “domínio” do homem sobre a mulher (Gn 3,16), de tantas formas ilustrada na história da humanidade e dramaticamente experimentada por tantas mulheres até a atualidade.
O que a narrativa dos primeiros capítulos do Gênesis tenta expressar é, por um lado, o que há de mais bonito na existência humana, o amor que une um casal e está na origem de grande parte das famílias, e, por outro lado, o que também a ameaça, a saber, o desejo de posse e domínio, que quer submeter as mulheres à autoridade dos homens.
Os dois momentos do relato bíblico das origens não só querem mostrar o sonho desejado por Deus para que homens e mulheres possam encontrar um no outro aquilo que os tira da solidão e os faz viver a aventura do “tornar-se uma só carne”, mas também aquilo que continuamente coloca em risco esse sonho, tão presente na quase totalidade das famílias ao longo de toda a história, também nas famílias cristãs. Certamente todos desejam ter uma família ideal, mas, como mostram os dramas que atravessam todas as famílias, só “mudando o endereço”, o ideal pode muitas vezes impedir o real de se tornar algo que humanize, segundo as possibilidades de cada pessoa envolvida numa relação. Na Amoris laetitia, a exortação do Papa Francisco após o sínodo da família, o pontífice chama a atenção dos pastores, ou seja, dos padres e bispos que muitas vezes apresentam de tal forma o matrimônio e a família que o tornam algo difícil de alcançar.
Nos discursos ideológicos que certos grupos têm realizado nesses tempos tão sombrios pelos quais passa o Brasil, a família estaria sofrendo a ameaça terrível da “ideologia de gênero”, que a destruiria, não mais distinguindo o masculino do feminino, mas estabelecendo uma espécie de sexualidade genérica, na qual tudo seria permitido. A própria ex-ministra da mulher, família e direitos humanos, apresentou no dia 11/10/2022 uma denúncia contra o tráfico de prostituição de crianças do Marajó, utilizando-se de uma informação para a qual não apresentou provas com função meramente ideológica, para associá-la às ameaças pelas quais estaria passando a família.
Mas, para além de todas as aberrações de certos discursos relacionados à família, é importante estar atento porque eles são utilizados num momento em que a família, sobretudo a dos mais pobres, vive em extrema vulnerabilidade, e o sistema que interrompeu o governo da Presidenta Dilma em 2016 e elegeu o que está atualmente no poder, só fez aumentar essa vulnerabilidade, destruindo as políticas públicas que visavam reduzir os impactos da desigualdade na vida dos mais pobres. O mais terrível, porém, é que os que supostamente defendem a família são os que a estão destruindo. Quando alguém não tem condições de dar uma vida digna para sua família, não é uma suposta “ideologia de gênero” que o ameaça, mas a falta de condições dignas de vida.
Muitos católicos e evangélicos que se sentem tocados pelos discursos que querem “salvar” ou “proteger” a família, têm enorme dificuldade de aceitar o que, em geral, já é realidade em suas próprias famílias, a saber, relações rompidas, segundas, terceiras ou quartas uniões, famílias monoparentais, famílias homoafetivas, pessoas que vivem sozinhas. Há muito farisaísmo em certos discursos, que recorrem também ao nome de Deus e a certos princípios da religião ou da fé cristã para anatematizar e condenar situações tidas por desviantes. A Igreja católica, como tão bem apresenta o Papa Francisco na Amoris laetitia, não pode deixar de anunciar o “evangelho da família”, ou seja, a boa notícia para a qual Deus sonhou e pensou o ser humano, como mostra o relato do início do livro do Gênesis. Mas, caso esse modelo fracasse, ela não pode tampouco deixar de acompanhar, discernir e integrar a fragilidade. Não são palavras de ordem, nem “marchas pela família”, como as que foram organizadas antes do golpe militar de 1964, que irão salvar a família, mas o empenho em acompanhar, discernir e integrar as relações que se romperam, buscando, sobretudo, salvar e proteger os que saem mais feridos e vulnerabilizados de relações muitas vezes feitas de violência e terror.
Mais que brandir gritos histéricos que supostamente se dizem defensores da família, urge, no Brasil que precisa encontrar caminhos de reconciliação e perdão, apostar no anúncio da família como “evangelho”, mas sem querer impor um modelo de família considerado como único válido. No caso dos fiéis cristãos de confissão católica, certamente o matrimônio sacramental é uma vocação para a qual a Igreja deve preparar os que a ele se sentem chamados. Como vocação, porém, não se realiza apenas no dia em que o casal deu seu sim diante da testemunha autorizada pela Igreja. É uma trajetória, que supõe toda uma vida, feita de descoberta contínua um do outro, buscando tornar realidade o que a “primeira instituição” do matrimônio como sacramento já intuiu no jardim do Éden: o tornar-se uma só carne como promessa, que precisa ser alimentada cada dia, que nunca se cansa de descobrir o outro como enigma e maravilha, mas que também pode se tornar descaminho, sobretudo se se fecha em si.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE