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Fé cristã e fatalidade

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“O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz tornar a subir dela” (1Sm 2,6).

Geraldo De Mori SJ

As fortes chuvas que se abateram sobre a região serrana do Rio de Janeiro, no dia 15/02/2022, deixaram um rastro de destruição e morte. Até o dia 23/02/2022, tinham sido confirmadas 182 mortes, das quais 111 mulheres, 71 homens, e desse cômputo, 32 crianças, sem contar os 89 desaparecidos, os inúmeros prejuízos materiais e os efeitos dos deslizamentos sobre o conjunto do meio ambiente. As imagens de pessoas sendo arrastadas pela correnteza, de corpos sendo levados, de homens e mulheres buscando familiares entre escombros e lama, circularam abundantemente em todos os meios de comunicação. Além de procurar os desaparecidos, enterrar os mortos e suscitar a solidariedade com os que tudo perderam, o tempo que se segue à tragédia levanta perguntas e promove respostas ao que, para alguns, é da ordem da fatalidade.

A fé cristã nasceu de um longo processo de interpretação da dor, do sofrimento e da fatalidade. Para muitos povos e culturas, o mal que atinge o ser humano, ou é o resultado de ações maléficas ou é o fruto de um destino fatal, contra o qual não havia como lutar. De fato, segundo algumas narrativas míticas que estão na origem de certas visões da existência, o mal, ou é anterior ao ser, ou se identifica com a condição corpórea ou é determinado pelo destino. É o caso, por exemplo, do mito sumério-acadiano Enuma Elish, que faz o mal remontar à própria divindade, ou do mito órfico, que atribui o mal à matéria, ou ainda, dos mitos trágicos, para os quais o mal tem sua origem no destino.

O povo hebreu deparou-se com essas interpretações sobre o mal presente no mundo e seus efeitos na vida humana. Em alguns extratos mais antigos das tradições literárias vétero-testamentárias se encontra, por exemplo, a ideia de que é Deus quem envia ou permite o mal, como no texto de 1Sm 2,6, citado acima, em epígrafe, ou ainda nos textos que falam dos “castigos” divinos contra grupos, por exemplo, as cidades de Sodoma e Gomorra, em Gn 19, ou pessoas, por exemplo, o Faraó, que, segundo algumas passagens de Ex 1-18, tem o coração “endurecido” pelo próprio Deus, ou os muitos castigos contra os reis de Israel infiéis à Lei ou contra inimigos dos hebreus. Embora recorrente em muitos textos, a ideia de que Deus é o autor do mal ou do castigo, ou a percepção de que Ele “permite” o sofrimento, que teria função “pedagógica”, não é determinante na visão bíblica dos males que se abatem sobre o mundo e o ser humano.

De fato, o que é determinante na visão bíblica da existência é a perspectiva ética, ou seja, Deus não quer o mal, ele se comove até as entranhas diante de seus filhos e filhas que padecem, e, se indigna frente aos sofrimentos causados pela injustiça. A ideia do “castigo de Deus”, presente no imaginário de muitas pessoas crentes, apesar de ter referências bíblicas, não corresponde à máxima revelação de Deus dada em Jesus de Nazaré. Os profetas a retomaram do mundo religioso com o qual conviveu o povo hebraico, com função de advertência. Mais que o castigo divino, eles queriam suscitar com seu uso o temor e chamar à conversão. A melhor tradução disso se encontra no livro de Jonas, que prega o castigo contra Nínive e, após a conversão da cidade e sua não destruição, se revolta contra Deus, “compassivo e misericordioso, […] grande em benignidade, que se arrepende do mal” (Jn 4,2). A misericórdia não apaga certamente a necessidade da justiça, exigida pela Lei, para a qual a existência realizada era a que se conformava à aliança, e a vida fracassada a que se afastava de suas prescrições (Sl 1; Dt 28). Muitos justos experimentavam, porém, na pele, os efeitos da maldade presente no mundo, como tão bem aparece em Jó ou em Jesus no alto da cruz. Em alguns textos, como o relato do dilúvio (Gn 6-9), vários oráculos proféticos e, mesmo as narrações da paixão, mostram alguns sinais no “céu” e na “terra” sinalizando uma possível “ira” divina.

Na verdade, como têm mostrado algumas leituras ecológicas dos últimos anos, sobre as “dores de parto” pelas quais passa a criação inteira (Rm 8,2), mais que castigo divino, certas manifestações da “fúria” da natureza, são resultado de ações humanas e não tanto expressão de uma fatalidade. O tema da “ira” ou da “cólera” aplicado a Deus, presente em vários textos, mesmo no Novo Testamento, como em Rm 1,18; 2,8, é, com efeito, uma tradução teológica do que seria a indignação divina face à maldade e à injustiça, que pervertem o mundo bom que Ele criou, transformando-o em lugar de desolação, sofrimento e possíveis desregulações. Nesse sentido, a tragédia de Petrópolis é, por um lado, efeito do modo não sustentável com o qual muitos lugares se relacionam com o meio ambiente, e, por outro, o resultado de políticas equivocadas do uso do solo urbano. Portanto, mais que fatalidade, existe responsabilidade humana, e Deus não pode ser invocado, nem como justificativa de uma fatalidade, nem como Aquele que quis a tragédia. Pelo contrário, como a criação, que nessa tragédia “sofre dores de parto”, Ele sofre com tantos inocentes que perderam suas vidas e com os que os choram.

Dissociar a tragédia da “fatalidade” ou ver nela o resultado de uma má relação com o meio ambiente ou ainda de uma má gestão da política do uso do solo urbano, apesar de correto, pois ao mesmo tempo “desculpa Deus” e responsabiliza o ser humano, não é suficiente. Haveria, talvez, que revisitar o tema da “cólera” ou da “ira” divina, para redescobrir nele algo da ordem de uma “comoção” que transborda, tanto como indignação quanto como “furor” ou “violência”, sacudindo e transformando. Infelizmente, nos últimos anos, muitos brasileiros se acostumaram com a tragédia, seja a de uma possível contaminação pelo SARS-CoV-2, seja a da violência que está à espreita e que pode se abater sobre os mais vulneráveis a qualquer momento, seja a do sentimento de impotência diante de um sistema que produz morte e violência. Talvez, para quem se diz discípulo e discípula de Jesus de Nazaré, haveria que colocar-se diante de sua cruz, do aparente silêncio do Pai frente à morte do Filho, para que do silêncio pudesse brotar a explosão de um amor que ressuscita o inocente e denuncia o culpado. Os muitos gestos de solidariedade com as vítimas da tragédia e seus familiares, são, sem dúvida, a expressão de generosidade e de compaixão, mostrando a capacidade de sentir a dor do outro em situação de extrema vulnerabilidade. Eles necessitam, porém, ganhar a força de uma indignação política que, como “ira” divina, faz irromper o mundo novo.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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