Carlos Roberto Drawin
A felicidade é algo óbvio, porque é da ordem da vivência e todos nós sabemos quando estamos felizes ou infelizes. Se assim é, então não há um saber acerca da felicidade a exigir algum esforço intelectual; todos já o possuem em seu corpo e em seu coração. Contudo, a felicidade parece fluir continuamente e sempre escapar de nossas mãos quando tentamos agarrá-la. Por isso, se me me encontro num estado jubiloso, logo em seguida ele se esvai e a alegria se converte em tristeza, o amor em indiferença ou ódio, o sossego em perturbação e angústia, e os momentos de plenitude, sempre breves e passageiros, murcham, se esvaem, dando lugar ao vazio e ao tédio. Por isso, em meio a tantas oscilações e inseguranças, estamos sempre em busca da autêntica e estável felicidade, ora projetando-a no futuro – quando então, sim, poderíamos gozar a sua definitiva posse – ora, idealizando-a no passado, conforme o dizer o poeta, “fui feliz outrora, agora!”.
Essa fluidez dos nossos estados afetivos muitas vezes nos arrasta para os extremos do esquecimento e do desespero. Nos momentos de intenso prazer, nada queremos saber acerca do que é ser feliz, nos é suficiente vivê-los, usufruí-los sem perguntas e inquietações. Eles parecem impor um certo esquecimento dos nossos problemas pessoais, das contradições do mundo, das incertezas do futuro. Rimos, cantamos, comemos, bebemos, dançamos e isso nos basta, tornando o não querer saber um precioso cúmplice da felicidade. Nos momentos infelizes, ao contrário, sucumbimos ao peso da dor e somos tentados ao desespero, vendo na almejada felicidade mera ilusão cuja persistência apenas nos faz sofrer ainda mais. Melhor seria não a cultivar e o amargo saber bem pode auxiliar-nos a dissipá-la.
Essa fugacidade da felicidade, a nos jogar de um lado para outro, nos fazendo oscilar entre o esquecimento e o desespero, entre a leveza da ignorância e a gravidade do desencanto, acaba por se fazer enigma e nos impor certo espanto interrogativo, naqueles outros momentos um pouco mais distantes das turbulências do vivido. Se o espanto é, como já ensinavam Platão e Aristóteles, o alimento do filosofar, então é fácil compreender o porquê a inconstante felicidade se tornou um constante tema da tradição filosófica.
Podemos objetar dizendo que se a felicidade é antes de tudo uma vivência afetiva, íntima e pessoal, própria a cada indivíduo em sua inviolável singularidade, então a filosofia faria bem em se calar sobre o assunto. Por que não aceitarmos, simplesmente, como se disse acima, a boa cumplicidade entre a alegria e o esquecimento? Há certa verdade nessa objeção, mas, assim posta, ela nos parece insuficiente por várias razões. Em primeiro lugar, porque nada de humano é alheio ao pensamento. Em segundo lugar, porque em tempos de exacerbado individualismo, é bom lembrar que o ser feliz contém um convite de compartilhamento, transborda a vida individual e também diz respeito à sociedade, ao viver em comum, por isso os filósofos medievais falavam do caráter difusivo do bem. Em terceiro lugar, como nos ensina o oportuno ensaio de Peter Burke, recentemente publicado em português, porque há diversos tipos de saber e de ignorância. Há aquela ignorância reativa, deliberada, obscurantista, hostil ao conhecimento, politicamente mal intencionada e que vem, não poucas vezes, acompanhada da arrogância e da vaidade. Há a ignorância fecunda, amiga da ciência e exemplarmente encarnada por Sócrates quando a aliava à busca do saber por se saber que não se sabe.
Aqui vemos despontar a sabedoria como consciência do não saber, denunciando na curiosidade vã a vã pretensão de termos a plena posse dos bens da vida: da saúde e dos prazeres, dos amores e das realizações. Nada é verdadeiramente nosso e definitivamente conquistado. O exercício dessa renúncia, difícil e a ser, continuamente, retomado, pode mitigar a sofreguidão da busca, equilibrar as excessivas flutuações do afeto, neutralizar a saturação do sensível que nos fascina e cega. A sabedoria é, então, essa “douta ignorância” do discernimento, do prudente sopesar nossas possibilidades, deveres e limites.
Num esclarecedor estudo, Arianna Fermani nos mostra como a palavra “felicidade” – quase sempre dada por óbvia – carrega uma rica constelação de significados. O primeiro deles, remetendo aos termos latinos “felicitas” e “felix”, está enraizado nas experiências mais básicas da vida: o nascimento, a geração, a nutrição, a fecundidade, mas a elas se associa a mais íntima e essencial experiência humana: a de portar o daímon e de ser, portanto, a morada da divindade. Desse modo, a felicidade foi nomeada como “eudaimonía” e, como um contentamento distinto do estado de satisfação, porque tensionado para a finalidade última da vida humana e cuja realização não se confunde com o agradável, a prosperidade material, mas pode suscitar a alegria (gaudium) do viver bem (eû zên) no agir bem (eû práttein). Essas distinções podem nos ajudar a melhor perceber o quase sempre obscuro e confuso entramado de nossas vidas, a não identificar a felicidade com os felizes acasos (euthykía), quase sempre independentes de nossa vontade, para aproximá-la do contentamento (eudaimonía) ou daquela beatitude nutrida pela constância do agir moral e a serenidade na procura do bem. E se, seres encarnados que somos, muitíssimas vezes, somos atraídos pelo desespero e o não sentido, sobretudo quando a doçura de viver se esvai, então a sabedoria pode ser o caminho de nos distanciar tanto do inesperado dos acasos, quanto da tirania das necessidades.
Carlos Roberto Drawin é professor no departamento de Filosofia da FAJE