“Tomei a peito investigar e sondar, mediante a sabedoria, tudo o que se faz sob o sol. Tarefa ingrata essa, que Deus entregou aos filhos de Adão, para nela se aplicarem” (Ecl 1,13).
Geraldo De Mori SJ
A conclusão de mais um ano acadêmico traz consigo as cerimônias de formatura, quase todas realizadas de modo remoto em 2020, mas, pouco a pouco retornando ao presencial em 2021. Não é diferente com os cursos de Teologia da FAJE, que formam, sobretudo, para o ministério ordenado na Igreja católica ou para atividades profissionais nessa área do saber.
A turma que se forma em 2021 tem, porém, uma particularidade. A maior parte de seus estudos foi feita durante a pandemia, através do sistema remoto. O uso das tecnologias de informação na educação já vinha se disseminando em todo o mundo, dando origem à educação a distância, com seus defensores e detratores. O recurso às tecnologias, por meio do ensino remoto, tornou possível a oferta de educação em tempo real para quem tinha acesso à internet. Seguiu-se então um período de adaptação e aprendizado, implicando profissionais da tecnologia da informação, das secretarias acadêmicas, docentes e discentes. Inicialmente pensou-se que o período de emergência sanitária seria curto, mas lá se vão quase dois anos e, nas universidades, o retorno ao presencial ou ao híbrido é mínimo. Teriam docentes e discentes se habituado ao sistema remoto, preferindo-o pela comodidade de se oferecer e receber o aprendizado sem ter que sair de casa, sem contar que a pandemia ainda não terminou, como mostra o surgimento de novas variantes? Muitos se dividem quanto à eficácia do ensino remoto, por não permitir um real contato entre professores/as e estudantes, por inviabilizar o encontro presencial entre estudantes, fundamental na formação de um espírito de corpo entre os que se preparam para atuar numa determinada área do saber.
Os impactos da pandemia sobre o mundo da educação deverão ainda ser mensurados e estudados nos próximos anos, como também os benefícios e os limites do uso dos recursos tecnológicos para o ensino-aprendizagem nesse período. Para quem fez a travessia da “inteligência da fé” nesse tempo, talvez, um primeiro balanço já pode ser proposto, embora ainda de modo esquemático e lacunar, como percurso a explorar.
A Teologia quer ser a “inteligência do crer” ou a “inteligência da fé”, segundo a célebre fórmula de Santo Anselmo: “fides quaerens intellectum”. Seu domínio, portanto, é o crer ou a fé, vistos à luz da razão ou submetidos a seu crivo investigativo e crítico. Seu ponto de partida são as várias expressões do crer, em suas manifestações simbólicas, rituais, textuais, e nas práticas que elas criam ou veiculam, que configuram a dimensão objetiva da ciência teológica, mas que emergem de subjetividades crentes, as quais podem ser investigadas enquanto indivíduos e enquanto comunidades de fé.
Nos momentos mais graves da emergência sanitária da Covid-19, que levou à interrupção de todas as atividades julgadas não essenciais, os templos religiosos foram fechados, impedindo ou reduzindo drasticamente a participação presencial dos fiéis. Como aconteceu na educação, as atividades de caráter litúrgico e religioso, já presentes nas mídias das diferentes denominações religiosas, passaram a ser veiculadas pelas plataformas digitais ou ampliaram sua presença nas TVs e rádios. O mundo católico brasileiro, além das TVs e rádios de abrangência regional ou nacional, e de figuras conhecidas na grande mídia (padres cantores e influenciadores, de tipo devocional, dogmático ou de autoajuda), viu emergir uma multidão de ofertas, a maioria de caráter litúrgico (missas, terços e adorações) e reflexivo. Apesar de terem sido declaradas “atividades essenciais”, as Igrejas e demais cultos, em geral, tiveram que seguir protocolos rígidos, com limitação de presenças em suas celebrações. Iniciou-se então também, através dos recursos tecnológicos digitais, uma nova etapa na vida das comunidades de fé e das pastorais: a realização de reuniões visando à organização (conselhos, grupos, pastorais e movimentos) e à formação (catequese e demais pastorais). Difundiram-se ainda outras experiências de caráter espiritual, como retiros on-line, com acompanhamentos feitos em formato virtual, atingindo muitas pessoas.
A Teologia feita no Brasil ao longo desses quase dois últimos anos foi fortemente afetada, não só nas instituições de ensino e pesquisa nas quais está presente, mas também entre teólogos, teólogas, cientistas da religião e pesquisadores/as que se interessam pela questão religiosa em geral e pelas expressões da fé cristã em particular. Do ponto de vista do ensino, a maioria das instituições “migrou” para o ensino remoto, obrigando docentes e discentes a um aprendizado nem sempre fácil, mas fecundo. O mundo das tecnologias digitais questionou fortemente os que se dedicam a pensar a fé, pois muitos dos que assumem essa tarefa acreditam que, como a fé, a reflexão que ela demanda tem um caráter mistagógico, que implica e exige o contato presencial. As possibilidades do virtual derrubaram, porém, certos preconceitos estabelecidos, levando, inclusive, a repensar o significado do virtual e do presencial. Para quem se dedica à pesquisa, que implica leituras, intercâmbios de pensamentos, observação das diversas práticas espirituais e religiosas, os recursos da tecnologia da informação abriram novas possibilidades.
No Brasil, muitas revistas científicas, por meio das quais são veiculados os resultados das pesquisas e reflexões da Teologia, já tinham migrado, desde a primeira década do século XXI, para o formato digital. Nos últimos anos, também os livros conheciam essa migração. Na pandemia, não só textos científicos, mas também uma série de outras formas de divulgação do pensamento teológico passou a ser divulgada em sites e blogs especializados, como também nas distintas redes sociais. Na verdade, não só ofertas religiosas “invadiram” o mundo virtual, mas também reflexões e eventos de todo tipo, muitos deles de caráter mais acadêmico. Em 2020, esse tipo de oferta foi mais tímido, mas em 2021, as grandes associações de pesquisa em Ciências da Religião e Teologia (SOTER e ANPTECRE), e outras iniciativas, realizaram congressos com uma quantidade impressionante de participações. A FAJE, junto com várias instituições teológicas do Brasil, criou em 2020, o “Tecendo Redes. Diálogos Online de Teologia Pastoral”, veiculando temas de teologia pastoral, com grande participação. Em 2021, as mesmas instituições organizaram o “Primeiro Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral”, que contou com mais de mil inscritos e um número grande de comunicações. Outras instituições também propuseram atividades parecidas.
Pessoas de várias áreas do saber se perguntaram, quando foi declarada a pandemia da Covid-19, como sairíamos dela. Alguns diziam, temos que aprender algo. Não podemos sair como entramos, nem como em muitos casos nos comportamos. Quase dois anos depois, essa pergunta é importante para a Teologia. Como ela se encontra nesse tempo de transição para o pós-pandemia? O que ela aprendeu? Em que também ela contribuiu para pensar esse grande “sinal dos tempos”, ajudando quem se diz cristão/ã a atravessar com esperança essa grande provação? Talvez, para quem conclui o percurso teológico nesse final de 2021, a pergunta que não pode deixar de se fazer é: “tomei de fato a peito investigar e sondar, mediante a sabedoria da cruz, minha fé em meio a tanta dor, luto, negacionismo, esperança? Se não assumi essa “tarefa ingrata”, que Deus confiou aos filhos de Adão em geral (Ecl 1,13), mas a mim que tenho o privilégio de “fazer teologia”, será que de fato fiz teologia, ou somente passei por ela?
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE