Élio Gasda SJ
Diante do abismo social, das polarizações ideológicas, do analfabetismo funcional em um Brasil violento e elitista, é preciso fortalecer a cidadania. Garantir cidadania a milhões de brasileiros vítimas da injustiça e do racismo estrutural, da homotransfobia, do machismo, da exploração do trabalho.
Considerar a pessoa humana como fundamento e fim da comunidade política significa reconhecer sua dignidade como cidadã mediante a proteção dos seus direitos fundamentais e inalienáveis. A política procede da natureza das pessoas.
Entretanto, no Brasil, o poder político virou chacota. A tradição aristotélica identifica três formas de poder: o paterno, o despótico e o político. O poder paterno é exercido no interesse dos filhos, o despótico no interesse do senhor, o político no interesse dos governados. No caso brasileiro, diria que estamos governados por um poder paterno, exercido no interesse dos filhos e amigos do governante.
Cidadania é o direito de ter direitos (Hannah Arendt). Primeiro desafio: educar para a consciência da cidadania. Conhecer, divulgar, defender e fazer cumprir a Constituição de 1988, que completa 33 anos. O acesso aos direitos reconhecidos pela Constituição pressupõe a existência de uma consciência dessa dignidade de cidadania. Nesse sentido, Adela Cortina na obra Cidadãos do mundo, propõe a defesa dos direitos políticos à frente dos direitos civis. Direitos políticos expressam o direito de uma pessoa de participar direta ou indiretamente da cidade, do governo da cidade da qual é cidadã.
Direitos civis estão relacionados às liberdades individuais. O Artigo 5º da Constituição é responsável por garanti-los: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Os direitos sociais estão definidos no Artigo 6º e devem ser ofertados pelo Estado por meio de políticas públicas: “são direitos sociais educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados”.
Até que ponto é possível falar de cidadania em sociedade capitalista orientada pela competitividade e pelo consumismo? É possível fortalecer a cidadania ou alcançá-la no capitalismo?
João Paulo II dizia que o trabalho é chave da questão social (LE, 2). O mundo do trabalho garantia o acesso aos direitos. Mas o capitalismo negou cidadania aos trabalhadores a partir do momento que transformou o trabalho humano em mercadoria. Mercadoria não tem direitos. Transformar seres humanos em mercadoria é negação de sua cidadania.
A sociedade está dividida entre os donos do capital (ricos) e os trabalhadores explorados (pobres). Os ricos controlam o poder político e o utilizam em defesa de seus privilégios. Eles não se importam com a fome dos pobres, a falta de emprego ou o aumento dos preços dos alimentos.
A injustiça dilacera o Brasil em dois países: dos privilegiados e dos despossuídos. Portanto, fortalecer a cidadania exige reestruturar toda a sociedade. Não há como garantir direitos sociais sem enfrentar a injustiça estrutural. A negação da cidadania aos mais pobres equivale a uma morte social. O capitalismo produz de forma sistemática a morte de grupos humanos a partir das classes sociais e de raça.
O capitalismo não visa promover a cidadania ou combater a pobreza. Capitalismo envolve invasão, morte, exploração, destruição dos meios de vida. A pandemia é um ensaio sobre a morte. A maioria da população foi abandonada pelo governo. Bolsonaro esvaziou o papel do Estado de promotor da cidadania e acelerou as privatizações dos serviços públicos que garantem cidadania e direitos sociais (moradia, educação, saúde), instituições públicas (universidades, prisões), bens comuns ambientais (terra, ar e água). Destruir as bases do Estado é destruir a instituição capaz de garantir cidadania. É vital recuperar o papel do Estado como protagonista do fortalecimento da cidadania.
Jesus não negociou com representantes do império nem com autoridades religiosas para devolver cidadania às mulheres oprimidas, aos pobres humilhados, aos enfermos marginalizados, aos que tinham fome. Jesus rejeita todas as formas de poder autoritário (Mc 10, 42).
Cristão chamado ao exercício da política permanece junto ao sem-poder algum, coloca os pobres no centro da política: “Na atividade política, os pequeninos, frágeis e pobres devem comover-nos” (FT, 197).
O início das lutas por cidadania e por justiça social começa com a sensibilização solidária com os mais pobres. Por isso, como ensina papa Francisco: “As maiores preocupações de um político deveriam ser a de encontrar uma solução para a exclusão social e econômica … os políticos são chamados a cuidar da fragilidade, da fragilidade dos povos e das pessoas…” (FT, 188).
O poder de toda e qualquer autoridade deve estar à serviço da cidadania e dos povos. Dom Luciano Mendes de Almeida, que completaria essa semana 91 anos é um exemplo desse serviço. “Em que posso ajudar?” Essa era sua filosofia de vida.
Élio Gasda SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Publicado orginalmente em https://domtotal.com/noticia/1543414/2021/10/fortalecer-e-exercer-a-cidadania-antes-que-seja-tarde/