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Fratelli Tutti: uma exigência fundamental

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Cláudia Maria Rocha de Oliveira

Como sabemos, a Encíclica Fratelli Tutti possui como objetivo “pensar e propor caminhos que tornem possível o desenvolvimento da amizade social e da fraternidade universal”. A pergunta que se coloca poderia ser, então, a seguinte: porque o papa Francisco escreve uma Encíclica sobre esse tema? Por que é importante pensar sobre a amizade social e a fraternidade universal? A resposta parece óbvia. Uma encíclica sobre esse tema é fundamental porque o papa possui uma visão muito realista diante da realidade. O papa não é ingênuo. Ele percebe com muita lucidez que estamos vivendo retrocessos no que diz respeito à integração das sociedades e à construção da unidade entre os povos. Esses retrocessos precisam ser enfrentados de maneira urgente por uma razão fundamental: eles colocam em risco a verdade inquestionável da dignidade da pessoa humana.

No primeiro capítulo da Encíclica o papa faz, então, uma análise muito realista da situação atual. Contudo, o objetivo da encíclica não é descrever o caos, mas dar voz à “caminhos de esperança”. Por isso, a partir do segundo capítulo, Francisco confere um tom mais prescritivo ao documento. O texto deixa em segundo plano a linguagem descritiva e assume uma perspectiva associada ao dever ser. Indicarei, brevemente, alguns elementos sobre os quais o papa reflete no primeiro capítulo da encíclica. Em seguida, mostrarei que, para ele, se queremos construir um mundo mais fraterno e irmão, precisamos seguir o modelo do bom samaritano.

Os retrocessos vividos pela humanidade, ao colocarem em perigo a dignidade humana, ameaçam a possibilidade de vivermos humanamente. Que retrocessos seriam esses? A Encíclica elenca vários. Vou indicar aqui apenas alguns: os conflitos locais, o desinteresse pelo bem comum, a instrumentalização da economia global com o objetivo de impor modelo cultural único, o processo de massificação da sociedade, o individualismo, o enfraquecimento da dimensão comunitária da existência, a desvalorização do passado, as novas formas de colonização cultural, a falta de projeto comum, a cultura imediatista, o esgotamento de recursos, a polarização política, a política reduzida à estratégia de marketing, a cultura do descarte, o desemprego, a pobreza, a fome, a discriminação, a escravidão, a violência, a proliferação de movimentos de ódio nas redes sociais, o fanatismo religioso, a incapacidade de escutar os outros…

Diante desse duro e triste cenário, como devemos nos comportar? Francisco indica, então, um modelo, uma figura exemplar, capaz de motivar a ação boa. O modelo reflete na sua própria vida o ideal ético a ser seguido. Para Platão, esse modelo é o sábio, para Aristóteles, o phronimos, para Descartes, o generoso. E para o papa? Ora, se queremos desenvolve a amizade social e a fraternidade universal, o modelo que personifica esse ideal e que, portanto, deve ser seguido, é o do bom samaritano.

Quem é o samaritano? O samaritano é aquele que também está à margem da sociedade e por isso está livre de etiquetas e estruturas. Dentre os que passaram pelo caminho foi o único capaz de interromper a viagem. Trata-se de alguém disponível a surpresas e, portanto, capaz de alterar, sem problema, projetos e programas estabelecidos. Estamos diante de uma figura capaz de olhar para além de si. Uma figura que se situa no polo oposto do modelo de ser humano que está na base da lógica do sistema neoliberal. Se o individualismo é um vírus que precisa ser combatido, o modelo a ser seguido é aquele de alguém que coloca o outro como prioridade, de alguém que é capaz de ver, acolher, se responsabilizar, cuidar, gastar tempo com quem está à margem do caminho.

A figura exemplar do bom samaritano nos lança, portanto, diante de um apelo e de exigências radicais. A dignidade humana é um valor inegociável. A defesa desse valor supõe lutar contra o individualismo que nos fecha em nós mesmos. O desenvolvimento da amizade social e a fraternidade universal, único caminho capaz de promover a realização humana, depende de uma opção fundamental: devemos (e isso é imperativo) ser capazes de sair de nós mesmos, de nos lançar na direção dos outros, de nos fazer próximos.

Cláudia Maria Rocha de Oliveira é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE

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