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Frattelli Tutti: A experiência do encontro e a promoção da paz

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Cláudia Maria Rocha de Oliveira

Um dos temas fundamentais apresentados pelo papa Francisco, na Encíclica Frattelli Tutti, é a questão do encontro, do diálogo e da promoção da paz. Para que a construção da amizade social e da fraternidade universal se torne efetiva precisamos colocar em prática a virtude fundamental do amor. Essa virtude é essencial porque nos abre ao diálogo, único caminho possível para construir a paz, em sociedades pluralistas como as nossas.

Ponto de partida para a realização do autêntico diálogo é o reconhecimento de que somos diferentes, únicos, singulares. A diferença faz com que surja sempre a possibilidade do conflito e da tensão entre pessoas que pensam, sentem e querem diversamente. Por um lado, portanto, o diálogo pode significar tensão entre pontos de vistas discordantes. Contudo, por outro, o diálogo precisa ser assumido, fundamentalmente, como oportunidade para que as pessoas que se colocam numa atitude dialógica, sejam capazes de ir além das diferenças, tendo em vista a busca da verdade e do bem. Nesse sentido, o diálogo se apresenta como a mediação que torna possível resolver as tensões de modo criativo e encontrar elos mais fortes que nos unem, nos tornam melhores e nos fazem iguais.

A Encíclica nos apresenta algumas condições para que o diálogo efetivamente aconteça. A perspectiva do observador neutro e impessoal é incompatível com o diálogo. O observador assume para si a prerrogativa de quem tem a capacidade de estabelecer sínteses verdadeiras. Essa ótica não confere espaço adequado para o estabelecimento de relações de reciprocidade e pode, facilmente, se exprimir a partir da lógica da dominação. A polarização vivida atualmente, a dificuldade das redes sociais em se constituírem efetivamente como canais de comunicação real entre as pessoas, em certo sentido, demonstram em que medida a lógica do observador tem permeado continuamente a nossa vida cotidiana. A lógica do observador não é capaz de promover encontro e de construir a paz.

Ao contrário, a perspectiva adequada ao diálogo é aquela assumida por falante e ouvinte. Portanto, aquela que diz respeito a atores/participantes capazes de falar, ouvir, assumir posições diante das falas uns dos outros. Diálogo pressupõe necessária relação intersubjetiva, troca, exercício autêntico da liberdade e, consequentemente, responsabilidade pelas posições e compromissos assumidos. Nesse sentido, para que o diálogo se realize é necessária a capacidade de escutar o outro, de compreender o que ele tem a dizer, de dedicar a ele o seu tempo. A escuta supõe respeito mútuo e o reconhecimento de que o interlocutor diz algo que merece ser ouvido. Além disso, para que o diálogo ocorra de modo pleno é indispensável que os interlocutores sejam capazes de adotar uma postura sincera e que tenham capacidade e disposição para se colocarem no lugar do outro. Apenas assim é possível entender e assimilar, adequadamente, o que é dito. O diálogo implica ainda, e fundamentalmente, a adoção de uma atitude de engajamento e empenho na busca cooperativa por um ponto de contato, que torne possível aos interlocutores descobrirem interesses comuns e a possibilidade de caminhar juntos.

Como é possível perceber, o diálogo torna possível o encontro entre as pessoas e entre os povos. Através dele é possível integrar realidades diferentes. Esse processo de integração não pode ser imposto por nenhum observador neutro. Trata-se de processo lento e difícil, contudo, indispensável para a criação de uma paz real e duradoura. O encontro que nasce com a experiência do diálogo não se constitui como “mero ato diplomático”. Ele se caracteriza por um exercício dinâmico de atenção e reconhecimento à existência e aos direitos do outro. Tudo que se opõe a isso gera violência e desintegração da relação entre as pessoas e os povos.

Em consequência, se queremos construir amizade social e fraternidade universal precisamos fomentar a cultura do diálogo e do encontro. Esse desafio é lançado pela Encíclica a todos nós, inclusive, às religiões. No último capítulo da Fratelli Tutti, o papa dirige a seguinte questão às instituições religiosas: “Como a instituição religiosa pode colocar em prática a proposta de construção da amizade social e da fraternidade universal?” No texto ele apresenta várias linhas de ação que convergem, basicamente, em três necessidades fundamentais: adotar 1) “o diálogo como caminho”; 2) “a colaboração comum como conduta”; 3) “o conhecimento mutuo como método e critério”. Isso significa que as religiões também possuem papel importante na construção de uma cultura do diálogo, do reconhecimento, do respeito e do engajamento conjunto.

Para colocar isso em prática torna-se indispensável fomentar o autêntico diálogo ecumênico capaz de promover amizade, paz, partilha e identificação de objetivos comuns entre membros de instituições religiosas diferentes. O não reconhecido do outro e de seus direitos, como vimos, gera violência. Isso também deve ser considerado quando estamos diante da necessidade de pensar o diálogo entre as religiões. A competição e inimizade entre religiões segue a lógica da dominação e é contrária ao projeto de construção da paz.

Além disso, o papa defende que as religiões precisam contribuir com o debate público. Elas precisam dar vozes às propostas que tenham como fim a promoção da formação integral e do reconhecimento da dignidade humana, da construção de laços de solidariedade e responsabilidade entre pessoas e povos, da primazia da política sobre a economia, e do amor sobre a dominação.

Como é possível perceber, a Encíclica se apresenta como um chamado à “conversão”, à mudança de rota. Para que haja amizade social e fraternidade universal torna-se dispensável a promoção da cultura do encontro, seja entre pessoas, povos e/ou religiões. O encontro é real quando nasce da autêntica experiência dialógica, tornada possível pela virtude do amor. Esse é o único caminho capaz de promover paz duradoura. Isso implica a capacidade de abandonar a lógica da dominação, da competição, da polarização e ter a coragem de se abrir ao outro, de se deixar surpreender positivamente por ele, e construir com ele caminhos conjuntos sem abrir mão da própria identidade.

Cláudia Maria Rocha de Oliveira é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE

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