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Gestos e palavras de dez anos de Francisco

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Geraldo De Mori, SJ

Em tudo dai graças” (1Tes 5,18)

Na carta aos tessalonicenses Paulo convoca seus leitores a “em tudo dar graças”, pois, segundo ele, “esta é a vontade de Deus a vosso respeito”. Em seguida, exorta-os a “não apagar o Espírito” a não “desprezar as profecias”, mas a examinar tudo e a guardar o que for bom. No décimo aniversário da eleição do Papa Francisco, esse texto é uma boa provocação para fazer memória e agradecer. Nesses dez anos, ele “iniciou processos” que poderão efetivamente desencadear o que muitos classificam como um tempo de reformas profundas da instituição eclesial. Seguramente, ele “não apagou o Espírito”, mas se deixou guiar por ele, com muitos gestos e iniciativas proféticos, que podem ser examinados. Mais que fazer um balanço, com os recursos da sociologia das instituições, talvez, como deveria ser toda leitura teológica, é necessário começar contemplando, para descobrir o que é “bom” no processo iniciado, para transformar o olhar em ação de graças. Sem corresponder aos diversos anos representados pelo pontificado de Francisco, o presente texto quer trazer dez de seus gestos ou ideias, que são palavras que ecoam e podem, sem sombra de dúvida, continuar interpelando à conversão as que as escutam.

Um gesto inaugural: “Peço que rezem para o Senhor para que ele me abençoe”. Com esse gesto, o novo Papa começava seu ministério de pastor à frente da Igreja católica. Não se trata de um gesto que visava provocar efeito, mas que manifestava uma crença profunda: o santo povo de Deus, como de tantos modos ele tem dito ao longo desses dez anos, é infalível “in credendo”, ou seja, somente quem viveu junto ao povo fiel e à sua “mística ao pé da porta”, crê que a oração do povo é eficaz e realiza o que faz.

Uma viagem inusitada: em 8 de julho de 2013, alguns meses depois de sua eleição, Francisco faz sua primeira viagem apostólica. Escolhe Lampedusa, a ilha na qual chegam milhares de migrantes vindos sobretudo da África em busca de uma vida mais digna na Europa, que não os quer receber. O gesto indica o lugar a partir do qual ele pensa seu ministério: a partir das periferias, geográficas e existenciais, como, certamente, é Lampedusa e o problema da migração. A visita é marcada pelo comentário que o Pontífice faz da pergunta de Deus a Caim: “Onde está seu irmão, Abel?” (Gn 4,9).

O grande sinal do “fim do mundo”: em 27 de março de 2020, numa tarde chuvosa e fria, em plena pandemia, o Papa faz a travessia da praça de São Pedro vazia, realizando em seguida um momento de oração pelas vítimas da pandemia. Começa a homilia evocando o momento pelo qual passava a humanidade: “Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos”. Em seguida, ainda inspirado no texto de Mc 4,35-41, recorda que “a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos nossos programas, os nossos hábitos e prioridades”. Nota-se nesse texto que o Pontífice toca a grande angústia e dor que preocupa a humanidade, mostrando que o lugar da Igreja é junto aos que sofrem tal dor.

O evangelho como alegria: no dia 24 de novembro de 2013 Francisco publica a Exortação Apostólica Evangelii gaudium, vista pelos comentadores como seu “programa de governo”. Além de retomar a Evangelii nuntiandi, de Paulo VI, Francisco propõe uma compreensão da Igreja como fundamentalmente voltada à missão, por isso a expressão “Igreja em saída”, para, certamente ajudar a humanidade ferida a carregar o duro peso da vida, mas também para anunciar-lhe um evangelho cujo principal convite é à alegria.

A salvaguarda da casa comum: a Encíclica Laudato si’ é, sem dúvida, junto com a Exortação Pós-Sinodal Querida Amazônia, a expressão mais madura do compromisso que deve ter a Igreja com o meio ambiente. Não se trata, porém, de uma visão romântica, mas de uma denúncia à “economia que mata”, não só o ser humano, mas o mundo que torna possível sua existência, e que se vê ameaçado. Também se trata de um grande apelo à “conversão ecológica”, que brota de uma “ecologia integral”, envolvendo todos os aspectos da vida humana com os demais seres que compõem a “casa comum”.

A família como evangelho: desde sua eleição, Francisco se preocupou em oferecer novas pistas para pensar o acompanhamento da família na sociedade atual, marcada por uma diversidade enorme de composições. As duas sessões sinodais e a Exortação Pós-Sinodal Amoris Laetitia, apontam caminhos pastorais para acolher, discernir e integrar a vulnerabilidade que marca de modo tão dramático as famílias hoje.

A juventude como perene inspiração ao encontro de um Cristo jovem: o sínodo sobre a juventude, além de colocar-se à escuta dos vários rostos das juventudes, repropõe pensar o próprio Jesus como fonte de juventude perene para a Igreja, apontando a convicção do Pontífice de que o encontro com o Cristo muda tudo, faz ver a vida com olhos novos, que a impedem de envelhecer, pois ele a rejuvenesce sempre.

Os poetas sociais: Francisco realizou vários encontros com os movimentos sociais e estabeleceu uma jornada mundial dos pobres. O poeta é quem sabe descobrir e produzir beleza no mundo. Ao nomear os movimentos sociais de poetas sociais, o Papa mostra a capacidade de ver nos que de tantas formas buscam um mundo mais justo e solidário uma das expressões da poesia em ação no mundo, por aqueles/as que a criam.

Igreja samaritana e comprometida com a fraternidade e a amizade social: a Encíclica Fratelli tutti faz do samaritano o ícone da fraternidade universal, pois, deixando de lado suas ocupações, vai em socorro ao estranho caído e espoliado no meio do caminho. Com esse texto o Papa mostra que o apelo a que a Igreja seja “em saída” não se reduz a uma saída em vista de anunciar uma doutrina, mesmo que na sua forma mais originária do querigma. Ela se traduz na saída daquilo que é a própria zona de conforto, ir em direção ao diferente, ser capaz de hospitalidade, de compaixão e cuidado do outro.

O futuro sinodal da Igreja: a comemoração do décimo ano do pontificado de Francisco é marcada pelo processo do sínodo sobre a sinodalidade. Ser sinodal significa “caminhar junto”. Isso se dá certamente no interior das comunidades de fé, compostas de diferentes membros. Isso se dá também com os diversos grupos que compõem a sociedade, pois, enquanto samaritana e promotora da fraternidade e da amizade social, a Igreja é chamada a criar pontes, não a levantar muros. E as polarizações presentes no mundo e na Igreja impedem muitas vezes o verdadeiro encontro, feito de escuta, respeito, acolhida, criador de diálogo e de um assumir juntos a cura de um mundo ferido.

Nos dez anos da eleição de Francisco, a Igreja deve elevar agradecida sua oração a Deus, recordando o gesto com o qual ele iniciou seu pontificado, o do pedido de oração e bênção. Certamente essa oração é que o sustenta em seu ministério, feito de muitas dificuldades, pois a polarização que atravessa a sociedade é criadora de cismas na Igreja. A força da oração do povo santo de Deus não o impede de desaminar, mas o leva adiante.

 

Geraldo De Mori, SJ, é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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