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Gratidão, indignação e iniciativa

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Geraldo De Mori, SJ

Tudo tem seu tempo. Há um momento oportuno para cada coisa debaixo do céu […] Tempo para calar e tempo para falar” (Ecl 3,1.7b).

O autor do Eclesiastes, também conhecido como Qoélet, tem a famosa sentença segundo a qual “há um tempo para tudo”: nascer e morrer, plantar e arrancar, matar e curar, destruir e edificar, chorar e rir, lamentar e dançar, abraçar e afastar-se, procurar e perder, guardar e jogar fora, rasgar e costurar, calar e falar, amar e odiar, guerrear e pacificar (Ecl 3,1-8). Essa série de oposições recolhe uma sabedoria baseada na convicção de que, submetido à temporalidade, o ser humano, embora tenha momentos que condensem o máximo de sentido ou, ao contrário, são desprovidos de sentido, tem a capacidade de colocar-se como “observador” da passagem de um tempo ao outro ou entrever entre um tempo e outro, uma espécie de gradação, que é uma mescla dos dois.

Entre fins de dezembro de 2022 e fins de janeiro de 2023 o mundo e o Brasil foram sacudidos por uma série de acontecimentos que podem ser classificados como cheios de sentido, sem sentido, e em busca de sentido. Fazem parte do primeiro tipo as mortes de Edson Arantes do Nascimento, conhecido mundialmente como Pelé, sem dúvida um dos maiores ícones do futebol brasileiro e mundial; e Joseph Ratzinger, que adotou, em 2005, o nome de Bento XVI e liderou a Igreja católica entre abril de 2005 e fevereiro de 2013. Do segundo tipo, sem dúvida alguma, a história do Brasil jamais esquecerá os atentados contra as principais instituições da República no dia 8 de janeiro de 2023, por um bando de pessoas ensandecidas, que não aceitaram o resultado das eleições e pretendiam interromper mais uma vez a “normalidade” do Estado democrático de direito no país. Ao terceiro tipo, enfim, pertencem duas cenas impressionantes que apontam para a busca de sentido: a condução e entrega da faixa presidencial feita por um grupo de representantes do povo brasileiro; as imagens chocantes de Yanomamis, que, por conta de uma política assassina de incentivo à invasão de suas terras por garimpeiros, os privaram de usufruir dos bens de suas terras.

Santo Agostinho, em sua reflexão sobre o tempo, no livro XI das Confissões, após uma longa análise sobre “o que é o tempo?”, afirma que o tempo existe na alma: enquanto passado, ele é memória; enquanto futuro, ele é expectação; enquanto presente, ele é atenção. A relação que o ser humano estabelece com essas três dimensões do tempo é a que dá sentido à sua existência pessoal e coletiva. O passado, por exemplo, pode ser recordado como memória grata ou como ressentimento e trauma. O futuro pode ser experimentado como esperança e projeto de algo melhor ou como ilusão, podendo se prestar a todo tipo de enganos quando alimentado por ideologias. O presente, enfim, pode ser lugar de uma decisão importante ou de mera fruição irresponsável, sem se deixar afetar com o que acontece ao redor com os outros.

Pelé e Bento XVI, sob perspectivas diferentes, podem, sem dúvida alguma, ser associados a uma memória agradecida. O primeiro, pelo gênio que foi no futebol, transformando-o em arte e possibilitando tanta alegria aos que torciam pelo clube no qual jogou grande parte de sua carreira e aos brasileiros a quem representava ao vestir a camisa da seleção nacional, ajudando-a a ganhar tantos títulos que orgulham o país. O segundo, pela paixão com que buscou descobrir, amar e defender a verdade da revelação cristã tal qual a compreende a fé da Igreja católica. Além de sua paixão e dedicação à teologia, que se traduz numa enorme obra escrita, Ratzinger exerceu um papel delicado e controverso frente à Congregação para a Doutrina da Fé no pontificado de João Paulo II. Muitos o recordam somente por esse papel e não conseguem ser gratos por tudo o que fez, como quando liderou a Igreja católica por quase 8 anos e teve a coragem de pedir renúncia ao perceber que não mais conseguiria conduzir a bom termo seu destino.

Os tristes episódios do dia 8 de janeiro nas sedes dos três poderes da República farão para sempre parte de uma memória pela qual nunca se poderá agradecer, pois os atos ali realizados são o resultado de ressentimento, ódio e violência. Devem despertar indignação, pelo que neles foi realizado, mas também pelo significado mais profundo e simbólico, pois eram verdadeiros atentados à civilidade de um “nós” coletivo que se expressa na organização política de toda sociedade racional e razoável. O ódio pela política, alimentado nos últimos anos pelos grupos que elegeram e apoiaram o bolsonarismo, é, em grande parte, expressão do ódio pelo outro que pensa diferente de si, mas também o ódio por quem encarna a maior parte da população brasileira em sua diversidade. Nesse sentido, não pode ter futuro, pois só produz violência e destruição. Alguns grupos nos quais esse ódio foi fomentado e alimentado se diziam religiosos e cristãos, como se podia ver em muitas pessoas que acamparam frente aos quarteis pedindo a intervenção militar. Um profundo exame de consciência deveria ser feito por todos os que se deixaram cegar pela ideologia fascista que deu origem a tais atentados. Nada mais contrário à fé cristã e àquele que está em sua origem, Jesus de Nazaré, do que o ódio pelo outro, pois sua vida foi entrega por amor, para que todos tivessem vida.

A entrega da faixa ao Presidente da República, no dia 01 de janeiro de 2023, por uma catadora de recicláveis, que fazia parte do grupo que a conduziu e era constituído por uma criança negra, um cacique indígena, um metalúrgico, um professor, uma cozinheira, um portador de deficiência e um artesão, é a lembrança de um presente vivo que quer promover um futuro diferente. Os que levaram a faixa são a “cara do Brasil”, marcado pela diversidade, pela resiliência, pelo esforço enorme de construir um país mais inclusivo, no qual todas as diferenças sejam reconhecidas, acolhidas e integradas. Essa “cara” do país, com muito do que já conquistou, é continuamente colocada à prova, desde que as naus de Cabral aportaram nas Terras de Santa Cruz. Os rostos esquálidos dos Yanomamis são a prova disso, pois mostram o destrato e o não reconhecimento dos que estão nas terras brasílicas há milhares de anos, sendo um apelo vivo à ação. Os que levaram a faixa verde-amarela e a colocaram no Presidente no dia em que ele tomou posse mostram o caminho já percorrido e o itinerário ainda longo que resta a ser trilhado.

Memória agradecida, memória indignada e memória inquieta e comprometida com o presente e o futuro se mesclam ao recordar o final de um ciclo e o início de outro. Mas, o tempo não é só memória. É também expectação e atenção. E essas duas experiências, instruídas pelos ensinamentos da memória, devem abrir novos caminhos para que o futuro seja mais reconciliado, capaz de reconhecer o que de bom e belo existe no outro. E o lugar para “expectar” o futuro é o presente, feito de contínuos apelos às iniciativas de um agir que se deixa interpelar pelo outro em sua diversidade e pluralidade. A fé cristã pode contribuir para que a memória ressentida e provocadora de atos que suscitam indignação seja pouco a pouco curada, abrindo espaço a um amanhã outro, menos violento, excludente e raivoso, feito de generosidade, gratuidade, perdão e dom.

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador do departamento de Teologia da FAJE.

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