Luiz Sureki, SJ
O filósofo Immanuel Kant (1724-1804) faleceu um século antes do nascimento do teólogo Karl Rahner (1904-1984). Invertendo um pouco a ordem temos que neste ano de 2024 faz-se memória dos 300 anos do nascimento de Kant e dos 40 anos do falecimento de Rahner. Mas, para além do fato de ambos terem nascido na Alemanha, o que mais eles têm em comum? Bem, digamos que eles, cada um no seu próprio campo de reflexão, filosofia e teologia, respectivamente, foram expoentes da virada antropológica dos tempos modernos que Kant chamou de “copernicana”. O que isso significa?
Recordemos primeiramente que o cientista polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) foi quem propôs e procurou comprovar com experimentos científicos a teoria de que não era o Sol que girava em torno do Terra, mas o contrário. Em lugar da teoria geocêntrica, ele propôs a teoria heliocêntrica, segundo a qual a Terra não estava no centro do universo, mas sim orbitando o Sol. Copérnico também postulou que a Terra girava em torno de seu próprio eixo diariamente, explicando assim os movimentos aparentes dos corpos celestes no céu que podemos observar. Essa ideia revolucionária estabeleceu as bases da astronomia moderna.
Mas…, o que teria isso a ver com o filósofo Kant?
Kant propôs a teoria de que não somos nós quem “giramos” em torno dos objetos para poder conhecê-los, mas sim que os objetos é que “giram” em torno de nós e são determinados e conhecidos por nós segundo o nosso aparato cognoscitivo, ou seja, nós só podemos conhecer o que nós mesmos determinamos, ou ainda: só sabemos o que as coisas são para nós, mas não sabemos como elas são ou poderiam ser em si mesmas.
Talvez um exemplo simples pode nos ajudar a entender melhor o que Kant está dizendo. Vamos supor que estivéssemos usando óculos verdes e com ele enxergamos todas as coisas esverdeadas. Este é o modo como estamos vendo as coisas. Se as coisas – em si mesmas – realmente são verdes/esverdeadas ou não, não o saberíamos jamais caso não pudéssemos tirar os óculos. Pois bem, se não podemos tirar o aparato de conhecimento que temos (“nossos óculos”), segue-se que nós só vemos e conhecemos as coisas como elas se apresentam a nós, e não como elas são (ou poderiam ser) em si mesmas. Isso é meio assustador, pois só conhecemos aparências. O que acontece, então, se aplicarmos essa teoria do conhecimento de Kant à revelação divina? A resposta é simples: não poderíamos ter nenhum conhecimento do que Deus é em si mesmo!
Mas …, o que isso agora tem a ver com o teólogo Rahner?
Aprofundando as conclusões de Kant, Rahner se pergunta pelas condições de possibilidade de chegarmos a algum conhecimento de Deus, se Deus se revelar a nós. A resposta, aqui um tanto simplificada, de Rahner, pode ser formulada assim: nós podemos perceber, compreender e aceitar uma revelação divina como tal porque nós somos, existencial e constitutivamente, os destinatários dessa revelação. O ser humano é o que surge quando Deus se expressa para fora de si mesmo. A Encarnação é o dizer-se humanamente de Deus. Deste modo, Deus não se revela apenas para nós, mas também e muito especialmente em nós! A revelação de Deus é, portanto, constitutiva da nossa autocompreensão. Isso significa também que a compreensão dos dogmas fundamentais da fé cristã passa pela nossa autocompreensão como seres humanos.
A teologia de Rahner assume a virada “copernicana” antropocêntrica de Kant, mas alarga sobremaneira o horizonte do conhecimento ao mostrar que em cada ato de conhecimento objetivo, pelo qual nós conhecemos algo da realidade, atuam outras condições de possibilidade ainda mais fundamentais que dizem respeito à constituição existencial do nosso ser como um todo e não somente da nossa faculdade de conhecimento.
Rahner via a virada antropológica como uma “necessidade do nosso tempo”. Ele observou que para muitos homens e mulheres alguns dos dogmas do cristianismo lhes soavam como “mitologia” indemonstrável. Já não mais se podia supor que temas teológicos complexos como o do pecado original, da concepção virginal de Maria, o da sua Assunção aos céus em corpo e alma, entre outros, eram (ou pudessem continuar sendo) por si mesmos evidentes e compreensíveis aos cristãos do século XX.
Certamente os homens e mulheres do nosso tempo (século XXI) não são os mesmos homens e mulheres do tempo de Copérnico (século XV-XVI), nem do tempo de Kant (século XVIII), nem sequer do tempo de Rahner (século XX). Acredito, contudo, que estamos precisando de uma nova virada ‘copernicana’, de uma nova “visão da totalidade da realidade”.
O planeta Terra, assim como o Sol e o (nosso) Sistema Solar com os demais planetas, tudo isso já se tornou muito pequeno nas dimensões da Via-Láctea com suas bilhões de estrelas como o Sol (uma estrela anã) e outros bilhões de planetas que as orbitam; e esta galáxia, também já se revelou ser muito pequena entre as bilhões de galáxias do universo. Perceber que tudo está interligado supõe uma profunda conversão (μετάνοια), uma virada na compreensão do todo. Para tanto, a Ciência (cientistas), a Filosofia (filósofos) e a Teologia (teólogos) precisam se reconciliar. Teorias cosmocêntricas, antropocêntricas e teocêntricas precisam dialogar, afinal, Cosmos, Anthropos e Theós constituem o todo da realidade-em-relação.
Nicolau Copérnico, Immanuel Kant e Karl Rahner perceberam, cada um ao seu modo, na sua área e no seu tempo, que teorias “consagradas” então vigentes já não davam mais conta de responder satisfatoriamente às necessidades intelectuais e às inquietudes existenciais profundas dos homens e mulheres do seu tempo. Será que as teorias científicas, filosóficas e teológicas que temos hoje, ou que nos são apresentadas, dão conta de responder às inquietações mais profundas das pessoas?
Não é só a ciência que está passando por uma nova “revolução copernicana”, a filosofia e a teologia também.
Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE