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Intuições inacianas para enfrentar as divisões dentro da igreja

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Perceber as tensões, vivê-las e senti-las na própria pele, sofrer com as divisões dentro da Igreja, são importantes. Mas creio que não podemos nos deter nisso. Não podemos nos resignar diante dessa situação. Precisamos ser proativos, buscar o que podemos fazer para reagir positivamente, ainda que não consigamos resolver todas as questões. Vem em nosso socorro as chamadas “Regras para sentir na Igreja (ou “com a Igreja”) que Inácio coloca ao fim do seu livro dos Exercícios Espirituais.

Quem chamou a atenção para isso foi Darío Molá no artigo que temos tratado anteriormente[1]. Inácio, ao fim dos Exercícios, quer preparar o exercitante para viver sua missão dentro de uma Igreja que, desde o seu tempo (poderíamos dizer, desde sempre!) é uma Igreja plural, diversificada, onde não faltam as tensões e divisões e onde a unidade e a comunhão serão sempre uma conquista a ser alcançada e aprofundada.

Sem pretendermos ser exaustivos, apontamos aqui alguns elementos (atitudes) que, sendo fomentadas, podem ser de grande ajuda para combater essa cultura de intolerância que vem crescendo a cada dia.

Atitude de fundo: “Ter ânimo aparelhado e pronto” (EE 353): essa primeira indicação certamente é a principal. Sem um desejo forte de contribuir para criar essa comunhão, dificilmente lograremos algo. O adjetivo “pronto” é repetido por Inácio por três vezes no texto das Regras para sentir com a Igreja. Isso é significativo e mostra a “prontidão” como atitude fundamental. “Pronto” também pode ser traduzido por “preparado”, manifestando também que é uma luta para a qual é preciso se preparar, pois não será nada fácil. Em que consistiria essa “preparação”?

Darío Molá aponta 5 movimentos ou dinâmicas que podem ajudar à comunhão:

 

  1. Um primeiro movimento é o movimento do “louvar” (EE 354-362):

Louvar propostas, ações, contribuições que as distintas pessoas, grupos e sensibilidades aportam ao bem da Igreja, ainda que não sejam as nossas, nem respondam exatamente à nossa sensibilidade. Louvá-las em sua complexidade e diversidade. Isso certamente custará muitíssimo, tanto mais quanto mais as opiniões se afastam das nossas, consideradas as únicas “certas”. Encontrar algo de positivo nos contrários. Creio que é preciso antes fortalecer nosso amor à Igreja. As “Regras para sentir com a Igreja” querem ajudar a formar uma “cultura do louvor”, que busca valorizar o que há de positivo na diversidade da Igreja, mesmo que haja situações que nos custa entender e aceitar. Uma disposição afetiva à comunhão, alimentada pela abertura e desejo de inclusão é o ponto de partida para superar as incompreensões.

  1. Um segundo elemento de ajuda a esse esforço pela comunhão é o que propõe a regra 12ª: “Devemos nos guardar de fazer comparações” (EE 364):

Comparar é um movimento que, por sua própria dinâmica, nos leva a ocultar ou diminuir os valores de uma parte para ressaltar os da outra. Exaltar exageradamente um lado muitas vezes nos faz deixar de perceber que, em todas as posições, há luzes e sombras. O que Deus pede a cada pessoa é que contribua com a Igreja com o que ela é, que é sempre distinto em cada caso e que esse aporte diverso é o que funda a riqueza da teologia, da pastoral e da vida da Igreja.

  1. Inácio aponta um terceiro movimento importante e difícil: substituir a crítica pública e pelas costas, às escondidas, pela correção fraterna:

É o que Inácio faz na Regra décima: “Da mesma forma que causa dano falar mal na ausência dos superiores às pessoas simples, assim pode aproveitar falar dos maus costumes às próprias pessoas que podem remediá-los” (EE 362).

A alternativa que Inácio propõe quando alguém encontra elementos censuráveis em outras pessoas não é o silêncio, mas sim a correção fraterna. Sendo sinceros, não é bem assim que atuamos. Parte-se logo para críticas, acusações, difamações, afirmações sem fundamento, tudo, menos buscar uma autêntica correção fraterna!

É preciso refletir sobre as causas dessa desproporção. Entrar na dinâmica da correção fraterna é mostrar a cara e isso nos compromete e expõe. Compromete-me a ter que justificar e refletir sobre o que digo, a colaborar na solução dos problemas que detecto e denuncio. É mais cômodo e mais fácil esconder-me no anonimato das redes sociais e, com isso, não “sujar as mãos”. Mais ainda: a correção fraterna tem “mão dupla” e, ao falar ao outro o que vejo e penso, abro a possibilidade – e assumo os riscos – de que o outro também me diga o que pensa e como vê a mim e minhas opções.

Custa-nos aceitar que, por mais que nossas convicções sejam bem formadas, não seremos nunca os donos da verdade. Não buscamos sair vitoriosos, mas que todos possam fazer a experiência de serem ouvidos, compreendidos e integrados no único Corpo Místico de Cristo.

A psicologia aprofunda as causas que nos fazem temer o confronto direto, pelas consequências que possa causar e lembranças de situações vividas no passado que não queremos reviver.

Algo importante a dizer aqui é que só é possível comunhão quando os dois lados estão dispostos a lutar por ela. E não um querer eliminar o diferente.

  1. Cuidar o modo e o tom que usamos ao abordar as questões (EE 366-369):

Todos os dias recebemos vídeos e posts que respiram violência e destemperos de toda sorte: selecionamos aqueles que nos agradam (por serem conformes ao nosso modo de sentir), compartilhamos os que nos são mais engraçados com nossas listas de transmissão e grupos afins. A pergunta é: será que estamos contribuindo para o serviço e o bem do Povo de Deus? Inácio pedia um critério de prudência principalmente na hora de abordar certas questões complexas e que cuidássemos muito do tom e do modo como as abordamos.

Para Inácio é preciso em tudo buscar “o maior serviço” e a “comunhão”. Vinculação muito feliz e fecunda: à medida que todos e todas, na diversidade de suas opiniões e sensibilidades, compartilhemos a mesma vocação e o desejo de servir à Igreja, mais fácil será que nos encontremos.

Enquanto defendermos como valor primeiro que sejamos nós os protagonistas, que a minha deve ser a última palavra, que o outro que tem uma visão diferente da minha deve ser vencido de uma vez por todas, a minha ideia é a que deve prevalecer, a comunhão se faz cada vez mais difícil.

  1. “Creio que entre Cristo Nosso Senhor, o esposo, e a Igreja, sua esposa, é o mesmo espírito que nos governa e rege para a salvação de nossas almas” (EE 365)

Esta é certamente a regra mais difícil de interpretar de todas, pelo seu início: “Devemos sempre manter – para acertar em tudo – que o branco que eu vejo é preto, se a Igreja hierárquica assim o determina”.

Para os leitores menos habituados à linguagem inaciana, é importante explicar que “Igreja hierárquica”, expressão aqui utilizada, não se identifica com “a hierarquia da Igreja”, mas expressa a Igreja toda na sua diversidade de relações. O Papa Francisco esclareceu isso em 2013, em uma sua entrevista às revistas da Companhia de Jesus: “Não devemos pensar que a compreensão do “sentir com a Igreja tenha que ver unicamente com sentir com sua parte hierárquica… Não! É a experiência da “santa mãe Igreja hierárquica, da Igreja como Povo de Deus, pastores e povo juntos. A Igreja é a totalidade do povo de Deus” (cf. Manresa 85 (2013) 405.

O que se pede aqui – e que nos exigirá muito – é que coloquemos em primeiro lugar a disposição afetiva de querer e buscar a comunhão na Igreja. Inácio está respondendo nessa regra a Erasmo de Roterdam, a quem parecia faltar, exatamente, esse amor à Igreja concreta, ainda que imperfeita, mas onde o Espírito fez morada.

Aqui se trata se estamos dispostos a renunciar a nossos argumentos e razões, por evidentes que sejam ou pareçam ser, a favor do bem e da paz e comunhão na Igreja. Trata-se de antepor o bem comum da Igreja àquilo que para mim é evidente.

Mesmo que tenha a convicção de estar certo, prefiro salvar a comunhão a seguir adiante com o que para mim é evidente.

O que se quer aqui afirmar é que há situações em que é muito mais importante que prevaleça a comunhão do que fazer valer, contra tudo e contra todos, a minha ideia particular, por mais acertada ou até mesmo brilhante que possa ser.

Isso só é possível se o amor é o que nos move a sermos membros de um único Corpo de Cristo. Essa capacidade de abnegação tão radical e difícil tem que nascer desde dentro, do amor ao Senhor e à Igreja, não pode ser exigida desde fora e ainda menos ser imposta à força. Exigirá aprender a discernir e viver em comunhão com toda a Igreja a própria experiência de fé e o próprio carisma no seguimento do Senhor, especialmente nos momentos em que esta comunhão se faz difícil.

 

Alfredo Sampaio Costa é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Darío Molá, Darío MOLLÁ, S.J.: La difícil alteridad en el interior de la Iglesia. Inspiraciones ignacianas, Manresa 86 (2014) 152ss.

 

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