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“Invisibilidade” e “Curiosidade”

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Geraldo De Mori, SJ

Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor tirou […]. Bendito seja o Nome do Senhor!” (Jó 1,21)

O Papa Francisco realizou, entre 31/01/2023 e 05/02/2023, sua décima visita apostólica, dedicada desta vez a dois países africanos: a República Democrática do Congo e o Sudão do Sul. Um dia após seu retorno a Roma, no dia 6/02/2023, o mundo assistiu, estarrecido, às imagens que começaram a ser divulgadas do terrível terremoto que atingiu a Turquia e a Síria. Em que esses acontecimentos devem interpelar os discípulos e discípulas de Jesus e toda pessoa que é tocada pela dor e pelos dramas da humanidade?

A Oração Eucarística VI D, que tem como subtítulo “Jesus que passa fazendo o bem”, traz, logo após a oração pela Igreja, o seguinte pedido: “Dai-nos olhos para ver as necessidades e os sofrimentos de nossos irmãos e irmãs; Inspirai-nos palavras e ações para confortar os desanimados e oprimidos. Fazei que, a exemplo de Cristo e seguindo o seu mandamento, nos empenhemos lealmente no serviço a eles. Vossa Igreja seja testemunha viva da verdade e da liberdade, da justiça e da paz, para que toda a humanidade se abra à esperança de um mundo novo” (cf. Missal Romano p. 861). Essa oração é uma provocação para quem participa da celebração por excelência da Igreja, a Eucaristia. Mais que o olhar que convida à adoração, tão valorizado nas celebrações de Adoração do Santíssimo Sacramento, pede-se um olhar que veja as necessidades e os sofrimentos que assolam tantas pessoas no mundo. E o ver em questão é um ver que conduz à ação, pois, trazendo a memória daquele cujo sacrifício é recordado, o Cristo, pede para que o fiel tenha palavras e ações que confortem e estejam ao serviço de quem sofre, tornando a Igreja, o corpo de Cristo vivo e servidor da liberdade, da justiça e da paz, abrindo dessa forma a humanidade à esperança de um mundo novo, sinal do reino.

A visita aos dois países africanos estava prevista para julho de 2022, mas, por uma série de razões, não pôde ser realizada naquela ocasião. O Papa Francisco, fiel ao seu princípio, de que é das periferias que melhor se vê o que acontece no mundo, não só abriu seus olhos, mas também seus ouvidos para escutar o testemunho de dor das vítimas de situações de terrível sofrimento nos dois países visitados. No Congo, ele denunciou os que promovem uma guerra sem fim numa das regiões mais ricas do mundo em minerais estratégicos para o atual ciclo de desenvolvimento tecnológico da humanidade, exploração que configura um novo colonialismo, tão ou mais perverso do que o que assolou o país e o continente desde que o modelo de desenvolvimento em curso no mundo está em vigor. No Sudão do Sul, fortemente dilacerado por guerras que desumanizam e destroem a dignidade do ser humano, com outros líderes religiosos, ele participou de uma oração que cria as condições do diálogo que promove a paz. O que mais chamou a atenção nessa viagem, porém, foi certa invisibilidade e silenciamento de sua visita pela mídia internacional, incapaz de perceber que o que está acontecendo nessa “periferia do mundo” é um sinal de uma incapacidade de ver as “necessidades e os sofrimentos” de tantos homens e mulheres, diminuídos/as ou simplesmente relegados/as ao ostracismo, como se nada de bom tivessem para oferecer à humanidade.

A “invisibilidade”, à qual estão relegados os conflitos e padecimentos do Congo e do Sudão do Sul, contrastam, nos últimos dias, com a hiperexposição de imagens da tragédia que se abateu sobre a zona fronteiriça entre a Turquia e a Síria. Essa hiperexposição de imagens, pode ser classificada como “curiosidade”, segundo Heidegger no parágrafo 36 de Ser e Tempo, uma das formas de existir mais “impróprias” ou “inautênticas” do ser humano. Certamente é importante fazer circular informações, sobretudo num momento em que toda informação pode ser crucial para salvar quem está sob os escombros, mas, em muitos casos o muito mostrar não é seguido de um verdadeiro “ver” as “necessidades e sofrimentos”, ou seja, não produz gestos de compaixão e solidariedade, somente uma excitação visual, como quando acontece um acidente automobilístico numa estrada e todos param, com uma espécie de “curiosidade mórbida”, querendo ver o que aconteceu, mas nem sempre transformando o ver em agir.

Um “ver” mais profundo dessa tragédia se interessaria, por exemplo, pela sorte dos milhares de refugiados que fugiram da guerra que há anos assola a Síria, entregues muitas vezes à própria sorte, sem despertar verdadeiros gestos de compaixão e solidariedade da parte da comunidade internacional. No fundo, esses refugiados estão condenados à mesma “invisibilidade” que recai sobre os congoleses e os sudaneses do sul. Certamente não se pode generalizar e lançar juízos condenatórios sobre a comunidade internacional. Muitos cristãos e muita gente de “boa vontade” se deixam afetar pelas dores desses povos condenados à invisibilidade ou que despertam apenas curiosidade, e são os gestos que brotam desse deixar-se afetar que fazem a diferença.

Os sofrimentos mediatizados por esses dois acontecimentos podem parecer tão grandes e insolúveis que muitos se dizem: “o que posso fazer? Não consigo dar conta de toda dor que se abate sobre o mundo”. Com efeito, essa dor, como no episódio do Geraseno dos Evangelhos, é “legião” (Mc 5,1-20; Mt 8,28-34; Lc 8,26-39) e parece impossível de ser expulsa da realidade humana. Mesmo assim, dentre as cenas mais tocantes da visita do Papa Francisco à República Democrática do Congo, merece destaque seu encontro com as vítimas da guerra no leste do país e a cerimônia na qual algumas delas depositaram os instrumentos de sua tortura, facões, facas e machados, aos pés de uma cruz. Algo parecido ocorreu no Sudão do Sul, onde Dom Carlassare, bispo que sofreu um atentado e que levou as balas que o feriram para colocar aos pés da Nossa Senhora. A oração ecumênica pela paz naquele país também foi um dos momentos altos da visita. Esses gestos de ressignificação da dor diante da cruz ou da imagem de Maria, e os momentos de oração pela paz, certamente não põem fim ao conflito e aos dramas que ele desencadeia na vida das vítimas, mas as ajudam a serem consoladas e a fazerem um caminho de reconciliação e perdão, necessário para que suas vidas sigam adiante e, quem sabe, com um aprendizado a mais, doravante não sejam mais atingidas pelo ódio e a violência. Uma outra cena, extraída das muitas que foram transmitidas sobre a tragédia do terremoto, é a do pai que segura a mão de sua filha, morta sob os escombros. Nesse gesto se condensa o silêncio de uma dor que não tem fim, mas também o vínculo de amor que é mais forte do que a morte, ligando pai e filha, mostrando como o humanum persiste, mesmo em situações tão adversas, e indicando que o caminho da compaixão também passa por esses gestos extremos de silêncio frente à dor do outro.

A sociedade da imagem, na qual vive a maior parte da humanidade nessa terceira década do século XXI, é em grande parte pensada como “distração”, suscitando não o verdadeiro olhar, que produz gestos de compaixão, solidariedade, denúncia, serviço, mas o olhar da febril “curiosidade”, que não muda nada, contentando-se apenas em acostumar a mente a não mais se escandalizar e deixar-se afetar pela dor do mundo. Não é, porém, a esse olhar que a fé cristã convida seus seguidores, chamados, como no relato da criação, a ver a beleza e bondade, ou, como em Jo 11, 33, a chorar frente a dor.

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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