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Jejum, Esmola, Oração

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“Deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20).
Geraldo De Mori SJ

Grande parte do “mundo cristão” iniciou, na quarta-feira de cinzas, 02/03/2022, mais uma caminhada de preparação litúrgica para a Páscoa do Senhor, conhecida como quaresma. Uma série de rituais e símbolos são postos em valor nesse tempo, dentre os quais a própria imposição das cinzas sobre a fronte dos fiéis na quarta-feira de cinzas. Do ponto de vista das cerimônias, durante toda a quaresma exclui-se o cântico do Glória, adota-se a cor lilás nas vestes litúrgicas e a ornamentação dos templos é reduzida ao mínimo. Em algumas igrejas ainda se conserva a prática de cobrir as imagens dos santos com panos de cor lilás. Todo esse quadro externo, com a prescrição do jejum e da abstinência visam, porém, ao que é insistentemente pedido na segunda carta de Paulo aos Coríntios, proclamada na liturgia das Cinzas: “deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20). A Igreja do Brasil, há mais de 50 anos, entendeu que o processo de conversão não é somente pessoal, mas comunitário. Por isso, instituiu as Campanhas da Fraternidade, que chamam a atenção para aqueles pontos que os fiéis e toda a sociedade precisam levar em conta para crescerem em humanidade reconciliada. Para 2022, o tema é: “Fraternidade e Educação” e o lema: “Fala com sabedoria e ensina com amor” (Pr 31,26).

O sentido da quaresma é preparar os/as cristãos/ãs para experimentarem mais uma vez o grande amor de Deus manifestado no dom da vida de Jesus, seu Filho, na cruz, por amor. Cada fiel é chamado a colocar-se mais uma vez diante do mistério da cruz e ressurreição, deixando-se visitar por ele e, ao mesmo tempo, indo em sua direção. Tudo isso já é dado em cada liturgia, mas, no período da quaresma, há como que um processo de intensificação, feito, inicialmente, de uma preparação, que leva cada um/a a se perguntar até que ponto está “revestido de Cristo”, segundo o dom da graça que recebeu no dia do batismo. A insistência na penitência e na conversão, própria desse tempo, não visa à criação do sentimento de culpa, mas, sobretudo, à recordação do dom do perdão e da reconciliação, que todos/as receberam, mas no qual nem sempre vivem.

Três práticas religiosas, provenientes da experiência espiritual do judaísmo, são postas em valor nesse período: o jejum, a esmola e a oração. Na liturgia das Cinzas, no evangelho proclamado, Mt 6,1-6; 16-18, Jesus oferece uma chave de leitura de como viver essas práticas: não como ações a serem vistas pelos demais ou como sinais de uma pretensa piedade merecedora de recompensa, mas como um voltar-se real para o que cada prática significa. Nesse sentido, o jejum, ao provocar a carência, recorda a importância de descobrir que tudo na vida é dom. Certamente, o “pão de cada dia” é fruto do trabalho e do esforço de cada um/a, mas também do dom do emprego, da saúde, da moradia digna, dos estudos etc. Em Israel, o jejum remetia aos 40 anos no deserto, região inóspita, na qual a busca do pão era difícil, o que levou o próprio Deus a alimentar seu povo com o maná. O jejum, ao recordar a carência, não pretende somente levar à experiência da privação de um alimento, de algo que cria dependência ou de hábitos que provocam dificuldades nas relações com os demais. Seu sentido mais profundo é o de redescobrir que tudo o que cada um é e tem não vem de si. No fundo, é o que Jesus, nos 40 dias no deserto experimentou: “nem só de pão vive o ser humano, mas de toda palavra que vem da boca de Deus” (Mt 4,4). A esmola, segunda prática proposta para esse tempo, é a consequência prática do jejum, sua tradução em generosidade e solidariedade, que pode se expressar de muitas maneiras, dentre as quais as que o próprio Evangelho de Mateus, na parábola do juízo final apresenta: dar de beber a quem tem sede, de comer a quem tem fome, vestir quem está nu, visitar quem está na prisão ou quem está enfermo, acolher os estrangeiros (Mt 25,31-46). A oração, enfim, é o reconhecimento de que na sede mais profunda que habita cada ser humano, que se manifesta de tantas maneiras, algumas delas equivocadas, como o desejo desordenado de ter, de poder, de fazer sucesso, de prazer, e outras autênticas, como a sede de ser feliz, de ter uma vida realizada e plena, está alguém que a precede, ou, como o diz de modo tão lapidar Santo Agostinho: “fizestes-nos, Senhor, para ti, e nosso coração anda inquieto enquanto não repousar em ti”. Esse alguém, a tradição cristã identifica como o Deus de Jesus, a quem ele chamava Pai e que dá seu Espírito.

Chama ainda a atenção, na liturgia das Cinzas, a leitura do profeta Joel, na qual Deus pede a seu povo que volte para ele de todo o coração, “com jejuns, lágrimas e gemidos”. O texto continua com uma conclamação ao povo para realizar um grande jejum e orações, para o que Senhor tenha piedade, pois seu povo estava, na ocasião, ameaçado por inimigos. Um apelo parecido foi feito pelo Papa Francisco para ser realizado na quarta-feira de cinzas de 2022: oração e jejum pelo povo ucraniano e para pedir a paz. Muitos poderão se perguntar que sentido tem pedir oração e jejum para parar uma guerra. Não se pode ver nesse apelo a ideia de que, por uma espécie de milagre, Deus interviria, interrompendo a lógica que desencadeou a guerra. Trata-se de algo mais profundo, pois a oração e o jejum, como acima foi assinalado, podem provocar a conversão dos corações, fazendo-os descobrir o mundo e a vida como dons e Deus como aquele que os dá, querendo que todos possam experimentar o outro não como inimigo, mas como próximo, com quem se pode tecer relações de fraternidade e amizade. A oração e o jejum podem suscitar a conversão, única que, de fato, muda progressivamente toda lógica assassina que move os povos às atrocidades das guerras.

A “guerra em pedaços”, denunciada pelo Papa Francisco na Carta encíclica Fratelli tutti, que assola tantas partes do mundo, volta a assombrar um continente do qual parecia ter-se retirado desde o final da 2ª Guerra Mundial, e reintroduz as polarizações que se seguiram aos tratados de paz, com a Guerra Fria, terminada com a queda do Muro de Berlin. Apesar de distante do Brasil, embora muitos brasileiros sejam descendentes de ucranianos, essa guerra mostra que se as novas gerações não se apropriam do que foi o aprendizado das que as precederam, as guerras e todas as outras tragédias das quais a história da humanidade está cheia, podem voltar. Nesse sentido, a oração e o jejum podem também ser vividos no Brasil não só como sinais de solidariedade com o povo ucraniano, mas como compromisso com a paz a ser construída no próprio país, que demanda um caminho de conversão, para os quais chamam a oração e o jejum. E o tema da Campanha da Fraternidade de 2022 mostra que tudo passa pela educação. É ela que torna possível o diálogo entre as gerações, a troca de aprendizados e a apropriação de tudo o que foi aquisição do passado, em todos os âmbitos da existência, inclusive o religioso e, no caso da Igreja, o da transmissão da fé. Para assegurá-la com qualidade, é preciso organizar-se, através de políticas públicas que incluam efetivamente a todos e formar cidadãos/ãs cujos direitos sejam respeitados. E há muito o que fazer, e os cristãos/ãs podem manifestar nesses processos sua conversão.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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