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José de Anchieta e a urgência de uma leitura decolonial

Gabriel Vilardi SJ

Neste início de junho houve um episódio que frustrou a expectativa do movimento indígena e de seus aliados: a retirada do Recurso Extraordinário 1.017.365 da pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal, marcado para o dia 23 desse mês. Em discussão está a tese do marco temporal que pretende impor uma interpretação restritiva dos direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal de 1988. A sua catastrófica confirmação pela Corte, defendida pelo atual governo, consistiria em um gravíssimo retrocesso na luta dos Povos Indígenas pelos seus territórios e preservação de seu modo de vida e sua dignidade.

Exatos oito dias após esse preocupante sinal, a Igreja celebra a Festa de São José de Anchieta, missionário jesuíta que, além de participar da fundação das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, gastou grande parte de sua vida junto aos Povos Indígenas. Fugindo das múltiplas instrumentalizações de sua figura ao longo dos séculos, inegável reconhecer as impressionantes capacidades e dons daquele que foi considerado um dos primeiros gramáticos, teatrólogos e poetas destas terras.

De origem espanhola, o Apóstolo do Brasil nasceu em 19 de março de 1534, no arquipélago das Ilhas Canárias. Nessa mesma época um de seus primos, por parte de pai, Inácio de Loyola, terminava seus estudos teológicos na Universidade de Paris e dava os Exercícios Espirituais aos primeiros companheiros que, conforme aprovação papal de 27 de setembro de 1540, fundariam a Companhia de Jesus. Entre os jovens que integravam esse internacional e diverso grupo de estudantes universitários, encontrava-se São Pedro Fabro e São Francisco Xavier.

Em 29 de março de 1549, juntamente com o primeiro governador-geral da colônia Tomé de Souza, chegou na cidade de Salvador, Bahia, liderando a primeira missão dos jesuítas, o padre português Manuel da Nóbrega. Alguns anos mais tarde, em 1553, era enviado para o Brasil o jovem Anchieta, com a esperança de que os ares tropicais fariam bem para a sua dolorosa tuberculose óssea.

Durante os últimos quatrocentos anos a narrativa em torno do significado de José de Anchieta, em distintas perspectivas, foi alvo de muitas disputas por atores com visões absolutamente contrárias. Tomados por paixões e olhares reducionistas ou superlativos seus intérpretes incorreram em consideráveis exageros e distorções. Isso tanto para se exaltar a sua imagem em um tom grandiloquente como para descartá-la por completo desconsiderando a sua importância histórica.

Nem algoz, nem herói! É preciso sair desse impasse rompendo com uma representação do jesuíta que se alterna entre a caricatura de um “perverso dominador dos indígenas” ou de um “salvador de selvagens que viviam na perdição”. Avançar significa não ter medo de uma profunda análise crítica e em conformidade com as compreensões do Concílio Vaticano II e do atual magistério trazido em Laudato SiFratelli Tutti e Querida Amazônia.

         Em inúmeras ocasiões, mesmo que com algum atraso, a Igreja já teve oportunidade de fazer um exame de consciência e pedir perdão pelos seus pecados que causaram sofrimento e escândalo para muitos cristãos e cristãs e homens e mulheres de boa vontade. Esses gestos, que devem ir além de uma falsa teatralidade, possuem uma alta carga valorativa, inclusive, no redimensionamento de um Corpo que mais do que ser visto como o “mestre detentor de verdades imutáveis” deseja assumir uma posição de “discípulo que se põe a caminho”.

Indiscutíveis os abusos e os erros praticados no processo de evangelização dos Povos Indígenas na América. Incontáveis foram as vezes que a cruz se aliou vergonhosamente com a coroa e a espada para dar vazão a interesses que nunca estiveram ligados ao Evangelho da Vida. O atual pontífice foi bastante claro no discurso que proferiu no II Encontro dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, em 9 de julho de 2015:

“Peço humildemente perdão, não só para as ofensas da própria Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América. E junto com este pedido de perdão e para ser justos, também quero que lembremos a milhares de sacerdotes, bispos, que fizeram oposição à lógica da espada com a força da Cruz. Houve pecado, e pecado abundante, mas não pedimos perdão no passado. Por isso agora pedimos perdão, e peço perdão; mas também lá, onde houve pecado, onde abundou o pecado, superabundou a graça através destes homens que defenderam a justiça dos povos originários”.

Qualquer forma atual de desrespeito à cultura e à espiritualidade dos Povos Indígenas implica em uma presença colonizadora totalmente inaceitável. Afinal, reitera o Papa Francisco, “digamos assim NÃO às velhas e novas formas de colonialismo” e “SIM ao encontro entre povos e culturas”. A cultura do encontro pressupõe sempre o diálogo aberto e sensível, jamais a imposição arrogante e autoritária de ideias e crenças de um grupo sobre outro.

Canonizado em 2014 pelo primeiro papa latino-americano, Anchieta ainda se ressente de um genuíno olhar decolonial que, sem deixar de enfrentar as contradições, as fragilidades e os erros do missionário jesuíta, permita aflorar seu testemunho apaixonado pelo Reino de Deus, no serviço incansável aos homens e mulheres a que foi enviado, até os seus últimos dias em 9 de junho de 1597.

Ir além de uma romantizada biografia oficial problematizando, com ousadia e empatia, o relacionamento mantido com os habitantes originários desta terra, por quase quarenta e cinco anos, não significa rejeitar uma personalidade tão complexa e com várias nuances como Anchieta. Na verdade, para Francisco, em recente mensagem dirigida ao Pontifício Comitê para as Ciências Históricas, “o historiador do cristianismo deve ter o cuidado de apreender a riqueza das diversas realidades em que, ao longo dos séculos, o Evangelho se encarnou e continua a encarnar-se”. Afinal, ensina que é nessa história o “lugar de encontro e confronto em que se desenvolve o diálogo entre Deus e a humanidade”.

Trata-se de um trabalho fundamental, pois “os historiadores contribuem com suas pesquisas, com sua análise das dinâmicas que marcam os acontecimentos humanos, para o início corajoso de processos de confronto na história concreta dos povos e Estados”. Apenas a partir desses processos de revisitação e reconciliação com a própria história pode-se libertar todas as forças para as causas que gritam surdamente nessa segunda década do século XXI.

Diante de reiteradas e sistemáticas violações dos direitos do Povos Indígenas, o óbvio precisa ser reafirmado com teimosia e utopia. Os indígenas querem viver! E a figura de São José de Anchieta, lida em chave decolonial, pode fortalecer essa luta. Luta essa pertence a todas as pessoas que sonham um mundo mais livre e justo.

O que faria Anchieta diante do garimpo ilegal nos territórios Yanomami e Munduruku? O que diria aos atuais políticos e empresários que trabalham para enfraquecer os direitos indígenas, com propostas como o Projeto de Lei nº 191 e a Tese do Marco Temporal? Como se posicionaria frente ao cruel martírio que sofre o Povo Guarani Kaiowá, que nunca teve a sua terra demarcada no Estado de Mato Grosso do Sul?

Oxalá a fidelidade criativa do santo jesuíta que decidiu gastar a sua vida entre os Povos Indígenas inspire as duras consciências e os corações incivilizados daqueles que impiedosa e hodiernamente controlam a coroa e a espada no Brasil. Ainda que o cristão Brasil se cale conivente e anestesiado ao genocídio indígena, as pedras falarão e o sangue indígena clamará aos céus por justiça!

 

Gabriel Vilardi SJ é Jesuíta; bacharel em Filosofia e Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia; membro da Equipe Indigenista dos Jesuítas do Brasil, vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região da Serra da Lua, em Roraima.

 

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