Silvia Contaldo
A interrogação “jura dizer a verdade, somente a verdade?” pressupõe que podemos não falar a verdade. Se assim não fosse, o juramento seria dispensável. Em geral, transitamos entre mentiras, algumas historicamente incrustadas, outras perante as quais manifestamos perplexidade, incredulidade. Verdade? Exclamamos. Verdade, valor inegociável?
O ser humano, falante, homo loquens, é também um fabricador de mentiras. É perito em logomaquias, na sua vida cotidiana, seja particular, seja pública. Nessa esfera, aliás, as manchetes da mídia falam por si, ou melhor, mentem por si. Sobre esse tema melindroso Santo Agostinho (354-430) escreveu, em 385, uma pequena obra, intitulada De Mendacio, motivado por discussões acerca da licitude do ato de mentir[1]. Interessante lembrar que, em Retratações (I,27), Agostinho nos conta que considerara aquele texto um pouco enfadonho de ler e que chegara mesmo a ordenar que o opúsculo fosse retirado do conjunto dos seus escritos, não tanto pelos temas que instigava mas pelo estilo sobremaneira difícil[2]. Ao contrário, vale a leitura desse ensaio que traz à tona um tema atualíssimo. Vide fake news.
Uma rápida olhadela nos dicionários já nos diz que mentiroso é “quem dá a falsa ideia da realidade, que induz ao erro; inexato, aparente, fingido, hipócrita, ilusório[3]’. Certamente, em nossos quefazeres cotidianos, que põem e dispõem ciladas morais, vez ou outra deparamo-nos com o dilema: mentir ou não mentir? Haveria alguma mentira honesta e misericordiosa? Para Agostinho, a resposta é não – exceto brincadeiras e chistes -, pois o ato de mentir tem seu gatilho no propósito de enganar: “ninguém poderá duvidar que mente aquele que com ânimo deliberado diz algo falso com intenção de enganar” (DM, 4). O mentiroso, para Agostinho, tem um coração duplo (DM,3). Justificativas tais como “mas eu menti para salvá-lo”, “ou menti para que ele não sofresse”, ou ainda a saída, pelo menos em nossa língua portuguesa, “não menti, apenas omiti”, não passam no crivo filosófico-teológico de Agostinho. Adiantando-se aos modernos, em De Mendacio, encontramos esmiuçadas situações do cotidiano, para as quais ainda, em muitos casos, titubeamos. A título de informação, o filósofo alemão I. Kant (1724-1804), na modernidade, também pôs em discussão a (i)licitude da mentira[4] e vale-se de alguns exemplos do De Mendacio.
Na concepção agostiniana, o que pesa consideravelmente é a intenção do sujeito, sobre a qual Agostino considerou oito modalidades[5], todas nascidas de corações duplos. Essa octologia tem hoje roupagens mais modernas. Por exemplo: seria mentiroso aquele que diz uma falsidade para enganar ou aquele que para enganar diz uma coisa verdadeira? (DM,4). E sobre a utilidade da mentira? Devo denunciar o esconderijo de alguém que está sendo procurado? (DM,24). Agostinho firmar-se-á, sempre, na prescrição absoluta de não mentir, pois a ‘boca que mente mata a alma” (DM,33).
Frente à interrogação “Jura dizer a verdade, somente a verdade?”, talvez o nosso autor de De Mendacio propusesse uma outra questão: jura que sua intenção é verdadeira? Bem, o fato é que em épocas sombrias e tempos conturbados, tais como Agostinho também experimentou, multiplicam-se aqueles que são “guiados pela defesa da mentira” (DM, 43). Vale o alerta de Alexandre Koyré (1892-1964), em seu artigo de 1943: “Nunca se mentiu tanto quanto em nossos dias. Nunca se mentiu de forma mais descarada, sistemática e constante. O homem moderno – é ainda no homem totalitário que estamos pensando – está mergulhado na mentira, respira a mentira, está submetido à mentira em todos os instantes de sua vida”[6].
Alguns séculos antes, o bispo de Hipona também sinalizava o quão perigoso é esse mergulho. Por isso o seu imperativo ético – não mentir. Da banalização ou da naturalização do ato de mentir passa-se facilmente ao desfazimento de preceitos éticos, justo aqueles que garantiriam a todos uma vida (mais) verdadeira.
Sílvia Contaldo é professora do departamento de Filosofia da FAJE
[1] Especialmente em razão das polêmicas com o Priscilianismo.
[2] Cf. Retratações, I, 27.
[3] Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
[4] Cf. I.KANT. Sobre o suposto direito de mentir por amor à humanidade (1797)
[5] Cf. De Mendacio, 25
[6] 0 Cf. J. Derrida, História da mentira: prolegômenos.