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Lei, Profecia, Sabedoria: uma “gramática” bíblica da existência

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Geraldo De Mori SJ

“Era necessário que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24,45)

 

Em 1971, a Igreja do Brasil começou a dedicar o mês de setembro à Bíblia, em parte incentivada pelo grande interesse que a leitura das Escrituras havia suscitado em sua pastoral a partir da recepção do Concílio Vaticano II que, na Dei verbum, convidava todos os fiéis a redescobrirem a Palavra divina como fonte da vida cristã, da ação pastoral e da reflexão teológica. O tema proposto para o Mês da Bíblia em 2022 é o livro de Josué, e o lema: “O senhor teu Deus está contigo onde quer que andes” (Js 1,9). Em geral, busca-se assegurar certa continuidade entre o tema proposto para esse mês e o tema da Campanha da Fraternidade, que em 2022 foi “Fraternidade e Educação, e o lema, tirado do livro dos Provérbios: “Fala com sabedoria, ensina com amor” (Pr 31,26).

Na história de Israel, o que é narrado pelo livro de Josué corresponde ao que o povo eleito viveu assim que ingressou na terra prometida, após a grande gesta de sua libertação, conduzida por Deus através de seu enviado: Moisés. Trata-se da história de uma conquista, que continua contando com o auxílio divino após os tempos fundadores do período mosaico. Se o povo se mantém fiel à aliança e suas prescrições, Deus continuará caminhando com ele, como caminhou no tempo em que saiu do Egito e fez sua travessia no deserto. A conquista da terra, narrada no livro de Josué, tem muitos elementos comuns ao que vivem hoje tantas pessoas no campo e na cidade do Brasil: luta por terra, dignidade, trabalho, moradia digna, direito à educação, saúde, emprego.

Essa aproximação entre a história do povo eleito no passado e a história de tantas pessoas que hoje buscam “conquistar” os direitos básicos de sua existência, é uma forma de trazer luzes, vindas da Palavra de Deus, para pensar o presente no qual vivem os que acreditam no Deus que se revelou no povo eleito e, através dele, em Jesus de Nazaré, confessado pela fé cristã como a máxima revelação da vontade salvífica divina. O interessante do Mês da Bíblia é que convida a Igreja cada ano a revisitar um texto que pode guiar os fiéis em seu caminho de aprofundamento da fé ou de busca de luz para certos problemas com os quais se depara, como é o caso desse ano, com a história de um período importante na história de Israel e o incentivo a acreditar que Deus está com sua Igreja e com os que nele creem, onde quer que ela ou eles estejam.

A Bíblia é a reunião de um conjunto de livros (73 livros, segundo o cânon católico e ortodoxo, 66, segundo o cânon protestante), que reúne os textos das Escrituras judaicas, reagrupados na TaNaK, acrônimo das iniciais dos livros da: Torah (= lei, que nas bíblias cristãs correspondem aos livros do Pentateuco); Nevi’im (= Profetas, que nas bíblias cristãs correspondem aos livros históricos e proféticos); Ketuvin (= Escritos, que corresponde aos textos sapienciais), e os livros das Escrituras cristãs, conhecidos como Novo Testamento, que, por sua vez, são reagrupados ao redor dos evangelhos sinópticos, dos escritos joaninos, dos escritos paulinos e das cartas gerais ou católicas.

Essas subdivisões ajudam o/a leitor/a a situar os diversos textos segundo certas especificidades ou características, importantes para melhor compreender seu lugar no conjunto das Escrituras. Alguns estudiosos tentaram oferecer uma chave de leitura do significado dessas subdivisões para o/a leitor/a, buscando captar seu significado profundo. Uma dessas chaves é a de Paul Beauchamp, exegeta jesuíta francês (1925-2001) marcado por uma corrente literária e filosófica que influenciou os estudos literários, a filosofia, a antropologia e muitos exegetas na segunda metade do século XX: o estruturalismo. Para Beuchamp, a subdivisão feita pela TaNaK não só ajuda a organizar os textos segundo seu gênero literário e a época em que foram escritos, mas oferece também uma inteligibilidade profunda do que é a existência judaica, sendo perceptível nos textos do Novo Testamento e podendo ajudar a pensar o que é a existência cristã.

A que correspondem os textos da Torah (= Lei) na Bíblia hebraica? Eles recorrem, por um lado, à linguagem narrativa para contar os grandes feitos de Deus na história de seu povo e, por outro, à linguagem legislativa, que, na verdade, é uma grande instrução, para que Israel possa permanecer fiel à aliança que Deus fez com seu povo. Esses textos dizem quem é Israel no concerto das nações e como, enquanto povo eleito, deve orientar sua vida em todos os âmbitos e diante de seu Deus. Os textos dos livros da Torah contam a história da libertação do Egito, tendo Moisés como principal referência, mas também histórias ligadas à eleição, figurada em Abraão, reunidas numa grande narrativa conectando os temas da libertação e da eleição e ligando-os à história da origem do mundo e da humanidade. A função desse conjunto de textos é dizer quem é Israel. Isso é dito através da narração, que confere ao povo uma identidade narrativa, que é indissociável da prescrição, central nos textos legislativos e normativos da Torah.

O conjunto dos livros que compõem os Nevi’im (= Profecia) também possui uma parte narrativa, que recolhe fundamentalmente a história das origens e do caminho traçado pela realeza em Israel, e a ação fundamental aí desenvolvida pelos profetas. A escritura profética tem outra função que a da referência para a formação da identidade. Ela é feita de denúncia e anúncio, ou seja, recorda quem é Israel, povo eleito com quem Deus fez aliança, que é infiel à aliança, deixando-se corromper pela idolatria e fazendo introduzir em seu seio todo tipo de injustiça, que leva ao esquecimento dos pobres, figurados pelas viúvas, órfãos e estrangeiros. Mas, além de denunciarem o pecado do povo eleito, os profetas também anunciam o caminho da conversão que leva ao perdão.

Os Ketuvin (= Escritos) são responsáveis por tornar o que é próprio do povo eleito disponível para o conjunto da humanidade, ou seja, eles se oferecem como sabedoria que pode dialogar com a sabedoria dos demais povos. Ao fazerem isso, eles vão ao encontro do que é comum à humanidade, a saber suas interrogações sobre o sentido da vida, a finitude, o sofrimento, o problema do mal. Essas interrogações são comuns a todos os povos e tornam possível um diálogo de Israel com eles que não ameaça sua identidade. Elas abrem Israel para se deixar enriquecer pela sabedoria das nações pagãs.

No Novo Testamento todas essas Escrituras se “cumprem” (= se realizam) em Jesus. As narrativas de sua vida (evangelhos) recolhem seus ensinamentos, que indicam que caminho seguir, que, por sua vez, apontam o rosto do verdadeiro Deus e de como manter-se fiel a ele, além de abrir o mundo a seu reinado, tornando a profecia realidade. A sabedoria que nesses ensinamentos e nos das comunidades vai sendo veiculada também é a realização plena da sabedoria divina, revelada no sinal paradoxal da cruz.

Na existência cristã, a Bíblia se torna então a referência para formar a identidade dos que creem em Jesus, abrindo-os à contínua pergunta sobre como essa identidade, de fato, é fiel àquele que está em sua origem, reproduzindo seus gestos e atitudes. Ela também mostra como cada fiel pode se deixar enriquecer com a sabedoria de quem não acredita em Jesus como Cristo, Senhor e Filho de Deus, sem perder o que lhe é próprio, mas deixando-se enriquecer por ele. Essas três Escrituras configuram-se então como “gramática” da existência cristã e tornam possível sua realização e sua oferta aos outros.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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