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Logos e sarx: admiração e maravilhamento

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Geraldo De Mori SJ

Logos e sarx: admiração e maravilhamento

“E a palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)

 

O dia 21 de maio de 2022 ficará marcado para sempre na memória dos amigos, de lideranças eclesiais e de teólogos e teólogas do Brasil pela morte de Johan Konings, jesuíta, padre, biblista, teólogo, pastoralista e uma das mentes mais lúcidas da reflexão teológica feita no país. Como ninguém, ele juntou erudição e preocupação em fazer-se compreender, em seu incansável trabalho de tradução e interpretação das Sagradas Escrituras. Coincidentemente, quase 20 anos antes, no dia 23 de maio de 2002, outro grande mestre a pensar da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, também ele jesuíta, mas filósofo, retornava para a casa do Pai. O que une esses dois homens, além da proximidade no dia e no mês em que morreram, ou o fato de serem padres jesuítas e trabalharem na FAJE? O que os diferencia, além da especialização em exegeta ou em filosofia? Por que aproximá-los?

Henrique Cláudio de Lima Vaz, cujo centenário de nascimento foi recordado em 2021, era originário de Ouro Preto. Desde cedo foi seduzido pelo amor da sabedoria. Após seus estudos no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, ingressou na Companhia de Jesus. Concluída a filosofia em Nova Friburgo, RJ, foi destinado a Roma, onde fez sua formação em teologia e depois o doutorado em filosofia. Ao regressar ao Brasil, iniciou sua carreira acadêmica na mesma faculdade de Nova Friburgo, contribuindo de modo decisivo para a renovação dos estudos filosóficos, com a introdução, antes ainda do Concílio Vaticano II, da filosofia moderna, tornando-se um dos mentores da Juventude Universitária Católica (JUC), com participação importante no grupo que deu origem à Ação Popular (AP), desdobramento político da JUC. Retirado da docência em Nova Friburgo e afastando-se da AP, iniciou o ensino e pesquisa na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, na qual formou várias gerações de intelectuais, voltando, em 1975, ao ensino da filosofia aos jovens jesuítas, inicialmente no Rio, e depois em Belo Horizonte, com a criação do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (CES), em 1982, nas dependências do Instituto Santo Inácio (ISI). Além de uma inteligência brilhante e de uma capacidade pedagógica extraordinária, destacou-se pelos dons impressionantes da escrita, que combinava rigor e beleza, numa erudição invejável, que a todos impressiona, revelando-se um dos principais intelectuais brasileiros do século XX, com contribuições importantíssimas para pensar o próprio país. Grande parte de seus artigos foram publicados na revista Síntese, muitos deles depois reunidos na Coleção Escritos de Filosofia. Publicou também obras mais sistemáticas, como, entre outras, Ontologia e história, Antropologia filosófica, Ética, Raízes da modernidade. Grande conhecedor de Hegel, seus cursos sobre algumas das obras do grande filósofo alemão estão sendo pouco a pouco editados e publicados pela Loyola.

Johan Konings, nascido 20 anos depois de Lima Vaz, no Limburgo, região da Bélgica marcada pelas culturas flamenga, francófona e germânica, iniciou sua formação em filosofia e teologia em seu país natal, concluindo-os com um doutorado em estudos bíblicos, na prestigiosa Universidade KU Leuven, com uma tese sobre o Evangelho de João. Concluída a tese, em mais de seis tomos, veio para o Brasil em 1972, como “padre fidei donum”, iniciando sua atividade como missionário em Porto Alegre, ensinando na PUC RS e no então Colégio Cristo Rei, em São Leopoldo, RS. Além de professor, iniciou uma atividade pastoral intensa, sobretudo junto aos jovens universitários, destacando-se como assessor do Movimento Cristão Universitário (MCU), importante na formação de várias gerações de jovens católicos em todo o país, muitos dos quais se destacando no mundo intelectual, político, social e eclesial do Brasil. Além de professor na PUC RS, participou como docente na PUC Rio. Em 1985 decidiu ingressar na Companhia de Jesus, e já no segundo ano de noviciado tornou-se professor da Faculdade de Teologia do CES, da qual foi diretor por um período, assumindo também a função de reitor do CES. Exímio professor, além do ensino, orientou inúmeras monografias, dissertações e teses, iniciando vários estudantes na pesquisa e na escritura. Sua colaboração com Edições Loyola o levou a participar de vários projetos importantes, como a revisão da tradução da Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), a criação da coleção Bíblica Loyola e, mais recentemente, da coleção Bíblia passo a passo.

Quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) decidiu realizar uma tradução oficial da Bíblia para a Igreja do Brasil, ele assumiu a coordenação do projeto por vários anos. A tradução, que envolveu vários biblistas brasileiros, demandou algumas décadas de trabalho, concluindo-se com a publicação, em 2018, pelas Edições da CNBB, do texto que doravante será a referência para todas as atividades pastorais da Igreja católica no país. Além de empenhar-se nesse projeto, o incansável exegeta belga coordenou a tradução brasileira do Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, inicialmente realizado por Denzinger e atualizado por Hünermann. Escritor profícuo, publicou várias obras sobre o Evangelho de João, além de textos importantes sobre outros livros do Novo Testamento, sem contar os comentários bíblico-litúrgicos, o último dos quais, publicado pela Paulus, concluído dias antes de sua morte. Apesar de já ter publicado uma Sinopse dos Evangelhos, seu último trabalho consistia justamente em elaborar uma nova Sinopse. Além da FAJE, colaborou durante anos com o Seminário de Diamantina, sem contar as assessorias, conferências, minicursos que ofereceu em vários lugares do Brasil. Sua competência o levou a ser convocado a participar da 12ª Assembleia do Sínodo dos Bispos que refletiu sobre A palavra de Deus na vida e missão da Igreja (5-26/10/ 2008).

Para além dos itinerários intelectuais desses dois gigantes da filosofia e da teologia no Brasil, que compartilharam parte de suas vidas na mesma comunidade religiosa e na mesma instituição acadêmica, o que eles deixam como legado não se resume ao que realizaram do ponto de vista acadêmico, e sim ao que conseguiram compartilhar de seu percurso humano com os que com eles conviveram. Os termos “logos” e “sarx”, ambos originários do grego, indicam o que os une e o que os diferencia.

Logos, em geral traduzido por “verbo” ou por “palavra” em português, é, sem dúvida, um dos termos mais importantes para expressar a aventura da filosofia, que, como gostava de dizer Lima Vaz, teve suas origens na Grécia do século VI aC, e que delineou todo o percurso da cultura ocidental e das culturas que ela marcou. Seu ponto de partida é a admiração, ou seja, a capacidade de perguntar-se pelas razões últimas de tudo o que é, estando na origem não só da filosofia enquanto amor despretensioso pela sabedoria, mas também dos outros discursos que buscam captar cada aspecto do real.

Sarx, em geral traduzido por “carne”, apesar de conhecido pela língua grega, não possuía, no conjunto do saber elaborado por ela, o valor que ganhou no mundo teológico inaugurado pelo evangelista João. Identificado pelo hebraico à finitude, ao que é perecível e mortal, sujeito à falha e ao limite, ganhou, com a famosa afirmação joanina de que o “logos havia se tornado carne” (Jo 1,14), um significado inimaginável, que, mais que à admiração, convida ao maravilhamento. De fato, admirar-se em filosofia é ser despertado para contemplar os inúmeros significados que se encontram em cada aspecto do real, enquanto o maravilhar-se é ser visitado por um significado inusitado.

Em ambas as atitudes há gratuidade e as duas são caminho de humanização e de sabedoria. A primeira eleva da terra ao céu, para se usar as metáforas espaciais que estão na origem do próprio conhecimento. A segunda, convida a deixar-se surpreender pelo que do céu desce à terra, ao mais frágil e muitas vezes desvalorizado, por ser perecível e falho. Deus, identificado pela primeira atitude como o mais sublime que se possa alcançar pelo logos, identificado ele mesmo com o logos, torna-se aquilo que parece incompatível com ele, sarx, fragilidade, ou, como diz Paulo em Fl 2,7, “se humilha” ou “se abaixa”. O evangelho joanino, ao qual Konings consagrou grande parte de sua pesquisa e missão de docente, escritor e divulgador, acolhe maravilhado essa capacidade divina e convida a todos os que buscam alçar-se ao mais sublime, que é na humildade da carne que ele se encontra e deve ser servido, para revelar nela sua glória.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

 

 

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