“Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
Geraldo De Mori SJ
Santo Inácio, no início da Segunda Semana dos Exercícios Espirituais, propõe a contemplação da encarnação (EE 101-109). Esse exercício intervém após os da Primeira Semana, na qual se medita sobre a dinâmica do pecado no mundo, na história da humanidade, de cada pessoa, na própria história. Só pode passar para a Segunda Semana quem for capaz de ouvir o chamado do Rei Eterno, fazendo-lhe oblação de “maior valor e estima” (EE 97). Para revestir-se de seu jeito de ser e assumir sua proposta de vida, o exercitante deve conhecê-lo internamente, para mais amá-lo e segui-lo. O primeiro passo é o da contemplação da encarnação, seguida à do nascimento de Jesus e dos mistérios que em geral são celebrados por ocasião do natal. No colóquio desse primeiro exercício, chama a atenção a expressão “assim novamente encarnado”. Talvez, para esse ano de 2021, é importante, mais uma vez revisitar o sentido dessa formulação.
O tema da encarnação é central na fé cristã, tendo sido formulado pela primeira vez por João, que no versículo 14 do Prólogo de seu Evangelho afirma: “E a Palavra se fez carne, e habitou entre nós”. Essa afirmação é inusitada, pois, as “muitas vezes” e os “diversos modos” através dos quais “Deus havia falado outrora aos Pais” (Hb 1,1), se davam através de seus enviados, com destaque, sobretudo, para os profetas. Ao dizer que a Palavra, através da qual Ele se comunicava nas palavras dos enviados, e pela qual Ele tudo havia criado, tinha se tornado aquilo que Ele criara, uma revolução no conceito de Deus começava a se operar, e também uma revolução na concepção do ser humano.
De fato, quando o povo eleito fez a experiência que seu Deus não era somente Deus de Israel, mas o Deus único, criador de todo o cosmos e de todos os seres humanos, o monoteísmo que daí nasceu era transcendente. Deus falava a seus enviados, através de sua Palavra e de seu Espírito, mas Ele não se misturava nem se identificava com nenhuma de suas obras, que pertenciam ao domínio da imanência. Ao dizer que sua Palavra se fez carne, João mostra que Deus pode assumir nossa imanência, para que ela realize plenamente aquilo para o qual é prometida, a comunhão com sua transcendência. A teologia dos séculos seguintes irá se debruçar sobre essa afirmação, fazendo da temática da encarnação uma das verdades mais importantes do cristianismo.
Apesar de sua riqueza e significado, pois trata-se de uma mudança profunda na compreensão de Deus, uma vez que, como diziam os Santos Padres, torna Deus “capax hominis” (capaz do humano), e na compreensão do ser humano, pois o torna “capax Dei” (capaz do divino), a teologia da encarnação podia dar a entender que tudo já tinha acontecido, uma vez que Jesus já tinha vindo e realizado o “maravilhoso intercâmbio” entre a divindade e a humanidade, como também gostavam de dizer os Santos Padres.
A Idade Média, com São Bernardo, e depois, com os mendicantes e muitos místicos e místicas, vai resgatar a importância dos mistérios da vida de Jesus para se pensar e viver a vida cristã. Inácio de Loyola, alguns séculos depois, fará desse resgate o centro de sua espiritualidade. O interessante, porém, como aparece nessa afirmação do n. 109 dos Exercícios Espirituais, é que, ao contemplar o mistério da encarnação, o exercitante não só imagina algo que aconteceu no passado, com seu caráter de definitividade, como tão bem afirma Hb 9,28, que fala de “uma vez por todas”, mas é chamado e experimentar em si e no seu mundo o “novamente encarnado”. Em princípio, a liturgia da Igreja já expressa isso, ao fazer memória da morte e ressurreição de Jesus. Porém, nem sempre os fiéis se dão conta de que o mistério celebrado deve implicá-los a realizarem o que vivenciam sacramentalmente. Eles devem experimentar de novo o “Deus capax hominis”, ou seja, o Deus que “se esvaziou” de sua condição divina, tornando-se humano, e mais ainda assumindo a condição de escravo (Fl 2,6-8) e o “homo capax Dei”, ou seja, o humano tornado capaz, por Deus, de tornar-se divino, desde que acolha o modo de ser humano revelado pela vida humana de Jesus de Nazaré.
O “novamente encarnado” da contemplação inaciana intervém no final da oração, no que Inácio chama de colóquio. Porém, é interessante que a contemplação toda, após alguns preâmbulos (EE 102-104), apresenta três pontos que serão o objeto da contemplação: o primeiro é ver as pessoas: as da face da terra, as pessoas divinas e Nossa Senhora; o segundo, é ouvir o que dizem; o terceiro é ver o que fazem. O ver, ouvir e olhar o que fazem as pessoas não se circunscreve ao tempo em que Jesus viveu no passado, mas ao hoje de quem faz o exercício. Ou seja, o que aconteceu no passado deve tornar-se presente, dar sentido à existência de quem contempla a cena evangélica.
Como acima foi dito, o que Inácio intuiu e propôs na contemplação dos mistérios relacionados ao tempo de natal, faz parte da vida litúrgica da Igreja. Nem sempre, porém, os fiéis se dão conta, entrando na mesma lógica comercial do natal, ou fazendo desta festa uma espécie de comemoração do aniversário de Jesus, numa tentativa de memória fraca do que significa celebrar a cada ano o natal. Na verdade, como tão bem intuiu Inácio, trata-se de experimentar de novo a infinita bondade divina, que, em sua condescendência e misericórdia infinitas, quer sempre de novo visitar seu povo, tornar-se Emanuel, Deus conosco. Nesse sentido, para além da liturgia ou das boas intenções, é importante, para quem se diz discípulo e discípula do Caminho, perguntar-se como, hoje, em seu presente, Deus o/a visita e o/a capacita para tornar-se mais humano/a, à imagem da humanidade nova que Ele inaugurou ao tomar nossa carne, em toda sua opacidade, mas também em tudo o que é ela é capaz de experimentar, sentir e expressar.
Num ano que viu tantas perdas humanas provocadas pela Covid-19, em que os efeitos da pandemia se fizeram sentir de forma tão dramática na vida de milhões de pessoas que ficaram sem emprego, no qual a violência, de palavras e efetiva, se exacerbou, mostrando os riscos de derivas autoritárias na vida social e política do país, o que significa celebrar o natal e experimentar o “novamente encarnado”? De que modo é possível fazer os que perderam seus entes queridos, os que foram reduzidos de tantas formas à miséria ou que se deixaram envolver pela violência das polarizações da política, de novo experimentarem a visita condescendente do Emanuel, tornando novas todas as coisas, abrindo caminhos de esperança e mostrando que não podemos desistir de nossa humanidade comum, pois ele mesmo a assumiu pois acredita que ela é capaz de Deus.
Geraldo de Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE