Alfredo Sampaio Costa SJ
Da “Dama dos seus sonhos” à “Maria com o Menino”: a imaginação de Inácio desde sempre foi povoada por mulheres. Não devemos subestimar o alto valor que a cultura de cavalaria concedia às mulheres, principalmente às da nobreza. Ao longo de sua conversão, observamos uma mudança de paradigma feminino: a “aparição” de um outro tipo de mulher, cuja imagem virá pouco a pouco a substituir a imagem da “Dama dos sonhos”: será de agora em diante, a Maria, Mãe de Jesus, a quem Inácio recorrerá.
É muito significativo que nos seus Exercícios Espirituais, nos momentos de maior importância ou maior grau de dificuldade, Inácio dirá ao exercitante para recorrer a Maria em primeiro lugar, para que obtenha a graça junto ao seu Filho. A devoção com que Inácio percorrerá capelas e santuários marianos mostra já o grande papel que ele atribuía a esse contato filial com a figura materna de Maria. A ela suplicava insistentemente que lhe alcançasse a graça de “ser colocado com seu Filho”.
Quando se põe a caminho a Jerusalém, Iñigo leva consigo a imagem da Virgem das Sete Dores, um livro de Horas de Nossa Senhora e seu “livro de 300 folhas” que ele tinha escrito as palavras da Virgem em tinta azul e as de Cristo em vermelho (cf Aut. 11). A peregrinação a Jerusalém se encontra escalonada de paradas em santuários marianos. A primeira é a Nossa Senhora de Aránzazu, a trinta quilômetros de Loyola, onde esteve uma noite em vigília de oração (Aut. 13). Depois passou por Navarrete, com a intenção de cobrar o dinheiro que o duque lhe devia para distribuir uma parte a pessoas com as quais se sentia “muito obrigado” e a outra para restaurar uma imagem da Virgem, que estava em mal estado (Aut. 13).
Seguindo para Montserrat, durante o caminho, teve um encontro com um muçulmano que negava a virgindade de Maria depois do parto. Iñigo tentou convencê-lo por meio de argumentos, em vão. Isso lhe causou um profundo descontentamento por tê-lo permitido afirmar isto. “E assim lhe vieram desejos de ir atrás do muçulmano e dar-lhe punhaladas pelo que tinha dito; e perseverando muito no combate a esses desejos, por fim ficou em dúvida, sem saber o que era obrigado a fazer” (Aut. 16). O cavaleiro devia ressarcir a desonra com sangue. Isso provoca nele uma luta interior e, ao não saber o que fazer, optou por deixar a rédea da mula solta até o lugar onde se encontrava o caminho da vila pelo qual o muçulmano tinha ido. Se a mula se dirigisse nesta direção ele teria ido atrás do muçulmano para salvar a honra da Virgem. “E fazendo assim como pensou, quis Nosso Senhor que a mula tomasse o caminho real, e deixou o da vila“(Aut. 16). Não é hora agora de interpretar essa passagem em todos os seus matizes. Inácio mesmo o contou para mostrar o quão rudimentar era, todavia, sua vida de fé, “cega, ainda que com grandes desejos de servir a Deus” (Aut. 14). Aqui vemos uma ingenuidade de Inácio, mas ao mesmo tempo uma grande entrega à vontade de Deus. A esse respeito M. de Unamuno estabelece na sua “Vida de Dom Quixote e Sancho” um estreito paralelismo entre Santo Inácio e Dom Quixote:
“E convém que vejamos também nisso de deixar-se levar pelo cavalo um dos atos de mais profunda humildade e obediência aos desígnios de Deus. Não escolhia como soberbo as aventuras, nem ia fazer isso ou aquilo, mas sim o que o azar dos caminhos lhe deparasse, e como o instinto dos animais depende da vontade de Deus mais diretamente que nosso livre arbítrio, deixava-se guiar pelo seu cavalo. Também Iñigo de Loyola, em famosa aventura, de que falaremos, deixou-se guiar pela inspiração de sua cavalgadura“(Ensayos, II, Madrid 1942,13).
Inácio dirige-se ao mosteiro de Montserrat, “pensando, como sempre o fazia, nas façanhas que tinha que fazer por amor de Deus. E como tinha todo o entendimento repleto daquelas coisas de Amadís de Gaula e semelhantes livros, vinham-lhe algumas coisas semelhantes àquelas; e assim determinou-se a velar suas armas uma noite toda, sem sentar-se nem deitar-se, mas um tempo de pé e outros de joelhos, diante do altar de Nossa Senhora de Montserrat, onde tinha se determinado a deixar suas roupas e revestir-se das armas de Cristo” (Aut. 17).
A devoção à Virgem do jovem Iñigo aparece muito vinculada com o mundo da cavalaria, que já desde os séculos XII e XIII se encontrava unido à piedade mariana. Este tipo cavaleiresco de devoção mariana se encontra, por sua vez, no contexto da piedade popular que encontramos nos Cancioneiros dos séculos XV e XVI, um dos quais foi composto por Ambrósio Montesino, tradutor da “Vita Christi” de Ludolfo de Saxônia, que tanto significou para a conversão de Iñigo, onde encontramos além do mais uma intensa presença de Maria nos mistérios da vida de Cristo.
Depois da singular vigília de armas diante do altar da Virgem de Montserrat, onde seu consagrar-se a Maria aparece como um aprofundamento cristocêntrico da sua nova vida, pois ali se decidiu a “deixar suas vestes e revestir-se das armas de Cristo“, Inácio se dirige à cidade de Manresa, a fim de passar ali alguns dias refletindo e anotando coisas referentes à sua nova vida (Aut. 18). Maria o acompanharia de perto: “Muitas vezes e por muito tempo, estando em oração, via com os olhos interiores a humanidade de Cristo e a figura que lhe parecia era de um corpo branco […] A Nossa Senhora também viu em forma semelhante, sem distinguir as partes” (Aut. 29).
Que lugar Nossa Senhora ocupa na nossa vida espiritual? Quais são as figuras femininas que marcaram nossa vida? Em que momentos sentimos com mais força a presença de Maria nos acompanhando?
Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE