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Maria na experiência espiritual de Santo Inácio e na nossa (3)

Alfredo Sampaio Costa SJ

A intercessão mariana

Anos mais tarde, em Veneza, depois de sua ordenação sacerdotal (24 de junho de 1537), se diz na Autobiografia que Inácio se determinou a “estar um ano sem dizer missa, preparando-se e rogando a Nossa Senhora que o quisesse por com seu Filho“. Esse ano de preparação coincide, por outra parte, com o tempo de espera combinado com seus companheiros para embarcarem de Veneza a Jerusalém, tal como tinham prometido em Montmartre (15 de agosto de 1535). Devido a que o prazo se cumpriu sem possibilidade de embarcarem, por causa da guerra com os turcos, decidiram aplicar a segunda alternativa, prevista também nos votos de Montmartre, de ir colocar-se à disposição do Papa se a ida a Jerusalém resultasse impossível.

Estando já Inácio com alguns companheiros perto de Roma, em novembro de 1537, “em uma igreja (La Storta) e fazendo oração nela, sentiu tamanha mudança em sua alma e viu com tanta clareza que Deus Pai o colocava com seu Filho” (Aut. 97). Ou seja, ao final não é Maria que realiza o seu pedido, mas sim o próprio Pai. Maria aparece, pois, como intercessora, por cuja oração o Pai lhe concede ser “companheiro” de seu Filho. Esta visão constitui a base espiritual do nome “Companhia de Jesus”.

O amor assim dirigido a Nossa Senhora não tem nada de fácil nem de sentimental. Em dezembro de 1524, na época em que os Exercícios já estão substancialmente compostos, Inácio escreve de Barcelona a Inês Pascual, uma de suas benfeitoras: “Queira Nossa Senhora (…) obter-nos a graça, com o nosso esforço e a nossa dificuldade, de converter os nossos espíritos fracos e tristes em espíritos fortes e alegres para o louvor de seu Filho e Senhor”. Amor que, bem longe de nos abater ou de nos desviar da ação, nos dispõe, pelo contrário, ao serviço de Deus, para o qual ele renova as nossas fontes de energia. Amor cheio de ternura e de mansidão, certamente, mas que não se demora em vãs efusões. A frase que acabamos de citar é única em toda a correspondência do santo. Mas, então, quer se calando quer agindo, ele guarda em seu coração, trazida do castelo paterno, uma estampa da Virgem das Dores, que mostra as suas preferências pelo mistério mais secreto, onde a Virgem se encontra unida à Paixão de seu Filho.

No Diário Espiritual encontramos Maria como “medianeira”, denominação que não encontramos nem nos Exercícios, nem nas Constituições da Companhia, nem na Autobiografia, nem parece encontrar-se no Epistolário de mais de 6000 cartas em doze volumes. Em que sentido Inácio o emprega?

A função intercessora de Maria a encontramos sobretudo no “Diário Espiritual” de Inácio, que é o escrito mais pessoal e íntimo que possuímos dele, onde anotou suas experiências religiosas de 2 de fevereiro de 1544 a 27 de fevereiro de 1545. Durante este tempo, Inácio estava ocupado em redigir as Constituições da Companhia de Jesus. O modo de fazê-lo era dizer a missa cada dia apresentando o ponto sobre o qual estava deliberando na redação do texto. No Diário se refletem suas dúvidas, decisões, diferentes moções e agitações que lhe invadem, sobretudo no que se refere à questão do grau de pobreza das casas dos professos, sobre o qual tem que tomar uma decisão se a pobreza deveria ser total ou somente parcial. Sente que deve se dispor à graça de Deus de forma muito particular e para isso recorre como ele diz aos “mediadores” Maria e Jesus.

Do dia 2 a 18 de fevereiro a vida espiritual de Inácio se centra nos mediadores, destacando a ação mariana. A partir do dia 21 começa a sobressair, quase unicamente, a figura de Cristo, em sua função de mediador com a Trindade. Portanto, esta primeira parte do Diário começa sob o signo de Maria, mas sem excluir o Filho. As notas tomadas entre 13 e 16 de fevereiro são bastante densas em experiências espirituais. Assim, por exemplo, a do dia 15 de fevereiro:

Em seguida, antes de sair para a Missa, começando a oração, eu sentia e me representava a mim Nossa Senhora e aquele ponto em que eu tinha falhado no outro dia, e não sem moções interiores e lágrimas. Impressão de que eu causava vergonha a Nossa Senhora, que tantas vezes rezava por mim, para que eu não pecasse tanto. A tal ponto que Nossa Senhora se ocultava de mim e que eu não encontrava devoção nem nela, nem mais alto. Um momento depois, procurando mais alto, como eu não encontrava em Nossa Senhora, veio-me grande moção a lágrimas e soluços, com uma certa visão e sentimento de que o Pai celeste se mostrava a mim propício e benevolente, a tal ponto que Ele me mostrava que gostaria de ser invocado mediante Nossa Senhora, que eu não podia ver” (Diário Espiritual 29-30).

Maria aparece salvando a distância que, por causa de uma falta, surgiu entre Inácio e Deus; ele, ainda que não a possa ver, não duvida de sua presença intercessora, que se deixará contemplar:

e depois, grande sentimento e visão de Nossa Senhora, muito propícia junto ao Pai, a tal ponto que, durante as orações ao Pai, ao Filho e no momento da consagração, eu não podia deixar de senti-la ou vê-la como aquela que é parte ou porta do céu por uma tão grande graça que eu sentia em espírito” (Diário Espiritual 31).

Ao conceber o Salvador do Mundo, Maria está cooperando já para a salvação da humanidade. É a vinculação especial com a pessoa de Cristo que funda, segundo Inácio, a função mediadora de Maria no mistério da salvação, sem que Inácio entre em distinções teológicas. A maternidade divina não foi simplesmente biológica, mas em uma ordem profundamente espiritual; através dela Maria se insere de maneira muito especial na única mediação entre Deus e os homens, que é a obra de seu Filho Jesus Cristo. Este é o resultado a que se pode chegar partindo do Novo Testamento: pela graça de sua eleição, Maria esteve unida a Cristo na totalidade do seu mistério salvífico desde a encarnação até Pentecostes.

Em que momentos da nossa vida recorremos a Nossa Senhora? Façamos memória!

Peçamos que ela nos coloque com seu Filho!

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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