Alfredo Sampaio Costa SJ
Clodovis Boff, na sua “Mariologia Social”, desenvolve magistralmente uma análise dos principais documentos eclesiásticos onde Maria é considerada. Ele se interessa em construir uma mariologia social, mas aquilo que ele aponta ilumina sem dúvida uma espiritualidade mariana encarnada. Nós poderíamos nos perguntar: como podemos viver uma espiritualidade profundamente mariana na nossa atuação como cristãos no mundo de hoje? Não pretendemos esgotar aqui as possibilidades, mas indicar com simplicidade alguns caminhos possíveis.
3.1 Maria, mulher solícita às necessidades humanas de todos os tipos
Esse é o primeiro traço mariano destacado por vários documentos do Magistério. Comecemos pelo “Marialis Cultus”: “A ação da Igreja no mundo é como um prolongamento da solicitude de Maria… Aquele amor operoso de que a Virgem Santíssima dá mostras, realmente, em Nazaré, em casa de Isabel, em Caná e sobre o Gólgota … encontra a sua continuidade… (também) nos seus (da Igreja) cuidados para com os humildes, os pobres e os fracos, e na sua aplicação constante em favor da paz e da concórdia social” (Marialis Cultus 28,2).
Este belo texto convida a Igreja toda a se espelhar no exemplo de Maria, sempre pronta a servir, atenta ao que acontece ao seu redor. A missão da Igreja no mundo deve se revestir do mesmo amor que Nossa Senhora testemunhou em todas as suas ações, mesmo as mais simples. A Lumen Gentium n. 58, referindo-se ao episódio de Caná, se refere à solicitude da Mãe de Jesus em favor dos noivos em dificuldade, através da expressão original “movida de misericórdia”. Aparece aqui o lado maternal do amor de Maria, que nós somos chamados a reproduzir no nosso serviço aos mais aflitos e desamparados. Temos que nos perguntar sempre, a cada momento, o que nos move? E pedir a graça de, como Maria, sermos “movidos pela misericórdia (compaixão)!
Com grande coragem, o documento Sollicitudo Rei Socialis, no n. 49 atribui à solicitude de Maria uma dimensão especificamente social, libertando assim a espiritualidade mariana de uma conotação puramente intimista e piegas: “A sua solicitude materna interessa-se pelos aspectos pessoais e sociais (o Papa sublinha) da vida dos homens sobre a terra”. Provavelmente, ao fazer essa afirmação, o Papa tinha em mente o Cântico da Virgem que canta os feitos de Deus na história do seu povo. Após essa declaração explícita da dimensão social, poderíamos esperar que o Documento de Puebla desenvolvesse ainda mais esse ponto. Curiosamente, isso não acontece. E os Bispos em Puebla se limitam a dizer que: “Todo o serviço que Maria presta aos homens consiste em abri-los ao Evangelho e convoca-los a obedecer-lhe…” (Puebla n.300). Se queremos encarnar na nossa vida essa dimensão da solicitude mariana, como deveria ser a nossa vida? Ou, para usar uma nossa expressão, como seria “viver marianamente”? Uma existência mariana implica em:
– Como Maria, “viver a serviço de”, em uma existência voltada para fora de si, renunciando aos próprios projetos.
– Estar sempre atentos às necessidades do mundo: Maria não se preocupou jamais em curtir a sua gravidez, mas soube arriscar-se para colocar-se a serviço de sua prima Isabel, que necessitava da sua ajuda. O outro necessitado vem em primeiro lugar.
– “Inclinar-se para”: fazendo-nos próximos, solícitos, prontos a acudir as necessidades dos outros. Maria se deu conta do que estava faltando na festa de Caná porque estava ali próxima, participando, colaborando.
– Sem esmorecer diante das dificuldades: Maria sabia que ainda não havia chegado a hora de Jesus, mas mesmo assim ela acredita que Ele atenderá ao seu pedido. Ela não desanima, vive uma existência pautada pelos desafios, mas centrada na sua fé firme.
– Insistindo sempre na luta pela justiça e pela paz social: essa dimensão responde plenamente àquilo que foi a vida de Maria, comprometida com o seu povo, como ela cantará no Magnificat.
3.2. Maria, mulher pobre e forte
A segunda característica destacada é o despojamento e a pobreza real que Maria assume e a fortaleza com a qual ela vive a sua missão.
De novo começamos pela Marialis Cultus: “Maria, que é a “primeira entre os humildes e os pobres do Senhor, mulher forte, que conheceu de perto a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio – situações essas que não podem escapar à atenção de quem quiser secundar, com espírito evangélico, as energias libertadoras do homem e da sociedade” (Marialis Cultus 37,2). Aparecem aqui em destaque duas atitudes características de Maria: a sua condição de mulher pobre e a tenacidade com que viveu e enfrentou experiências duríssimas, como quando teve que abandonar tudo e fugir para salvar a vida do seu filho recém-nascido.
Também a instrução da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé sobre a “Liberdade cristã e a libertação” de 1986 apresenta Maria como a representante do “povo humilde e pobre” e da sua esperança de libertação:
“No limiar do Novo Testamento, os « pobres de Javé» constituem as primícias de um « povo humilde e pobre », que vive na esperança da libertação de Israel. Personificando essa esperança, Maria ultrapassa o limiar do Antigo Testamento. Ela anuncia com alegria o acontecimento messiânico e louva o Senhor que se prepara para libertar o seu Povo. Em seu hino de louvor à divina misericórdia, a humilde Virgem, para quem o povo dos pobres volta-se espontaneamente e com tanta confiança, canta o mistério da salvação e a sua força de transformação. O senso da fé, tão vivo nos pequeninos, sabe reconhecer imediatamente toda a riqueza do Magnificat, ao mesmo tempo soteriológica e ética (Libertatis Conscientia 48,2).
Viver marianamente é assumir o caminho da Encarnação de Jesus na pobreza e no anonimato. Maria como ninguém viveu essa perspectiva, ela que gerou o próprio Filho de Deus em seu seio virginal. É assumir esse itinerário não de modo individualista, mas inserindo-se na história do povo de Deus, aprendendo a celebrar as pequenas vitórias que preparam e reconhecem a irrupção do Reino de Deus em meio à nossa história. Essa atitude implica sermos capazes de contemplar a História com olhos de fé, sabendo discernir, em meio aos acontecimentos fugazes e contraditórios da existência, as pegadas seguras do Senhor que se deixa encontrar. É viver na perspectiva da esperança messiânica que não nos deixa abater diante das contradições e percalços da História.
3.3. Maria, mulher combativa
Muitas vezes se deturpou a imagem de Maria, reduzindo-a a uma ingênua moça do interior, passiva e descompromissada, entregue à oração e aos afazeres domésticos. A Igreja em seus documentos procurou resgatar uma imagem mais condizente com o espírito mariano. Assim, por exemplo, na “Redemptoris Mater”, no número 11, aparece essa dimensão combativa de Maria, que arranca do clássico tema do proto-evangelho, referindo-se à luta entre a Mulher e a Serpente de Gen 3,15: “A vitória do Filho da Mulher não se verificará sem uma árdua luta, que deve atravessar toda a história humana”, ou seja, como explica o Papa, do Gênesis (cap.3) ao Apocalipse (cap. 12). No n. 47, o Papa João Paulo II declara que “Maria participa maternalmente naquele duro combate contra os poderes das trevas, que se trava ao longo de toda a história humana”. Esse tema aparece também na “Gaudium et Spes” 37.
Portanto, viver marianamente é não ter uma existência acomodada e alienada; implica uma atitude constante de discernimento e de compromisso, uma vida vivida em meio a combates constantes e violentos, em comunhão com toda a história da Humanidade.
3.4. A força da sua intercessão ao longo da história
Na vida espiritual conhecemos o quanto é importante a oração de intercessão pelas grandes necessidades da Igreja e do mundo. Maria é apresentada como mulher sensível, atenta, ativa, que toma para si as necessidades da humanidade e suplica ao seu Filho que obtenha as suas graças junto ao Pai. O texto que espelha essa atuação de Maria ainda hoje na sociedade é do documento “Redemptoris Mater” de João Paulo II. Ele retrata a experiência de tantas pessoas que, nos momentos mais duros da vida, sabem que podem recorrer à Virgem Maria para que venha em seu socorro:
“A mesma Igreja vê […] a Bem-aventurada Mãe de Deus no mistério salvífico de Cristo e no seu próprio mistério; vê-a radicada profundamente na história da humanidade, na eterna vocação do homem, segundo o desígnio providencial que Deus predispôs eternamente para ele; vê-a presente como mãe e a participar nos múltiplos e complexos problemas que hoje acompanham a vida das pessoas individualmente, das famílias e das nações; vê-a como auxílio do povo cristão, na luta incessante entre o bem e o mal, para que “não caia” ou, se caiu, para que “se erga” (Redemptoris Mater 52).
Viver marianamente implica assumir uma vida de oração profundamente encarnada, compassiva, amorosa, que suplica ao Filho, em prece confiante, que intervenha e faça irromper o seu Reino de Amor e de Justiça. É importante notar como Maria vive sua existência sempre em referência ao seu Filho.Viver marianamente é viver com amor de mãe acompanhando o desenrolar da existência dos seus filhos, com interesse verdadeiro, carinho e respeito pelas suas opções.
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE