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Maria na sua relação com os demais e com a sociedade (2)

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Alfredo Sampaio Costa SJ

 

4.1. Maria, empenhada no combate cósmico contra o Mal na História (Ap 12)

Outro texto longamente estudado por Clodovis Boff é o texto de Ap 12[1].  O autor sagrado apresenta a figura de uma mulher, grávida, que está para dar à luz e deve enfrentar o dragão terrível. A tradição patrística sempre interpretou a mulher como a Nova Eva, figura da Igreja empenhada em combater o mal e ali também entreviu a imagem de Maria.  Seguindo essa tradição, que consequências podemos tirar para a nossa vida espiritual?

– O que é aparentemente fraco será o vencedor no fim dos tempos: apesar de todo o aspecto aterrorizante do dragão a vitória final é da mulher e do seu filho. Somos chamados a viver nessa esperança as dificuldades e desafios do presente ameaçador.

– Mulher que está para dar à luz é ao mesmo tempo indefesa e geradora de vida : essa imagem simbólica é tremendamente expressiva e mostra que trazemos como um tesouro em vasos de barro, como dizia S. Paulo (2 Cor 4, 7-15). A mulher quando está para dar à luz revela ao máximo a sua situação de indefesa, mas ao mesmo tempo é geradora de vida, traz no seu seio uma nova criatura.

– Combate que assume proporções cósmicas: Chama a atenção os elementos apocalípticos do texto, envolvendo os céus, as estrelas, etc… Isso quer indicar que o combate contra o mal deverá invadir todos os rincões da nossa existência, mesmo os mais insuspeitados e inusitados.

– A Mulher (Eva), Maria (Nova Eva), a Igreja = unidade: a superposição das imagens da mulher, Maria e da Igreja nos ajudam a compreender a figura mariana como inserida no mistério da Igreja, assim como é apresentada no Concílio Vaticano II.

Viver marianamente é tomar consciência de uma existência combativa, inserida no mistério da Igreja, em comunhão com tantos outros nossos irmãos e irmãs que também se unem para buscar a mesma vitória final.

 

4.2. Assumir livremente na vida o compromisso responsável da Virgem na Anunciação

Se nos voltarmos agora para a cena da Anunciação (Lc 1), ali Maria aparece na sua mais plena liberdade pessoal. Ela, de fato, reflete sobre a estranha saudação do anjo (v.29), dialoga com o enviado de Deus para conhecer as condições da concepção (v.43). Virgem sábia e prudente, como diz São João Crisóstomo, “não se deixou levar pela alegria nem aceitou de imediato o que lhe era proposto”[2]. Ela decide com pleno conhecimento de causa (v. 38).

O seu diálogo com o anjo revela uma mulher que indaga, procura entender o que está acontecendo, nada tem de passiva nem de superficial. Toda a estrutura da cena da Anunciação é dialogal, como observa o documento Mulieris dignitatem (n.5). Maria aparece como autêntica parceira de Deus[3]. A sua resposta é fruto de uma fé viva e atuante, de uma disposição de si que implica deixar para trás os projetos humanos de outrora e lançar-se numa aventura totalmente desconhecida. Maria assume sozinha a responsabilidade de seu ato: ícone da liberdade como livre-arbítrio. “Eis aqui a serva do Senhor”: Maria é alguém livre, mas “livre-para”. A sua liberdade não é mera expressão de autonomia e de auto-afirmação. Maria se entrega livremente à vontade de Deus. É livre, sim, mas para servir em amor. Essa é uma liberdade que se solidariza e que ama. A liberdade da fé que se expressa em um consentimento: “Faça-se em mim!”. É uma abertura para acolher, um esvaziar-se que permite um encher-se. A fé, como suprema ação do homem frente a Deus, não é uma ação, mas, antes, uma permissão. É deixar-se amar. A fé tem fundamentalmente o caráter de uma entrega esponsal ao Mistério supremo[4].

Maria, mulher integrada: como qualquer pessoa, ela teve que se haver com seus dinamismos psicológicos e precisou lutar para integra-los. Ela tinha nossos instintos naturais. A diferença é que nela a graça atuava de modo pleno e em sinergia com uma vontade igualmente plena. Assim, a Virgem conseguia dominar e integrar perfeitamente os movimentos das suas paixões. O fato de ser “cheia de graça” não a impedia de, como Jesus, “crescer em idade, sabedoria e graça” (cf. Lc 2,52)[5].

Viver marianamente a Anunciação implica penetrarmos na mesma atmosfera de disponibilidade ativa à Palavra do Outro que nos interpela. Requer um apoiar-se de tal modo na fé que não tenhamos outro fundamento para o nosso “sim”, pronunciado com coragem e audácia, e ao mesmo tempo com a humildade de quem se reconhece conduzido mais do que o protagonista da história. É confiar-se totalmente ao poder do Altíssimo que nos recobrirá também com a sua Sombra. Falar de Anunciação é afirmar a liberdade como fundamento de toda decisão sadia. É reconhecer e assumir o nosso papel de interlocutores privilegiados de Deus. É seguir com confiança e esperança o caminho que nos leve à nossa integração afetiva, oferecendo-nos totalmente ao Senhor.

 

4.3. Gerar Cristo para o mundo e em nós

A Cena do Nascimento é certamente um quadro que nos encanta e nos comove. Contudo, teologicamente, mais do que uma recordação piedosa, trata-se da Encarnação em ato, acontecendo na História. O que podemos aprender dessa cena do ponto de vista da atuação de Maria? Como seria viver marianamente o Nascimento de Jesus?

Os Padres da Igreja, refletindo sobre essa cena, souberam mostrar que Maria antes de gerar o Cristo em si mesma, o gera na fé. Encarna a Palavra no seu coração virginal, para depois no seu seio dar à luz ao Verbo encarnado. Também nós somos convidados a deixar que a Palavra penetre no nosso coração e na nossa vida, para em seguida gerarmos essa Palavra no mundo em que vivemos e atuamos.

Os Santos Padres julgam que Deus não se serviu de Maria como instrumento meramente passivo, mas julgam-na cooperando para a salvação humana com livre fé e obediência (LG 56). Como podemos também nós viver essa mesma atitude participativa, interessada, comprometida de Maria? De que modo podemos dar a nossa contribuição ainda que pequena?

A figura de Maria grávida aponta para o Corpo da mulher como nova Arca da Aliança: valorização da mulher, da maternidade: viver marianamente implica também sermos defensores da Vida contra as forças que querem instrumentalizar o corpo da mulher. Assumindo a defesa da Vida em todas as suas dimensões, corporal e espiritual. Gerando vida, como Maria!

 

4.4. Maria, a perfeita discípula, a Virgem que sabe ouvir, nos ensina como escutar

Maria é discípula no mistério de Cristo e da Igreja porque é a primeira e mais perfeita discípula de Cristo, porque o acompanha em toda a obra da salvação e porque inspira outros discípulos. A Palavra de Deus é a primeira a testemunhar a vida de Maria como discípula de Jesus. Os exegetas destacam diferentes características do seu discipulado: Maria é aquela que acreditou (Lc 1,45); a serva do Senhor (Lc 1,38 em contraste com a incredulidade de Zacarias expressada em Lc 1,18); a que “ouve a palavra de Deus e a pratica” (Mc 3,20-21) frente à incredulidade e incompreensão dos próprios familiares14; a que crê tanto que é capaz de adiantar a “hora” do seu Filho (cf. Jo 2,1ss), despertando assim a fé dos próprios discípulos (“e os seus discípulos creram nele”); é a peregrina da fé (cf. Lc 1,38-45: porque crê, vai às pressas visitar Isabel)15; é discípula fiel até o extremo (cf. Jo 19,25-27), acompanhando seu “mestre” até no sofrimento mais profundo (cf. Lc 2,35: “espada” traspassará sua alma). Seu discipulado vai crescendo progressivamente na compreensão do mistério (cf. Lc 2,51: “conservava” no coração = dieterei: reflete ativamente; Lc 2,19 “meditando” = symballousa pondo junto, confrontando). É a atitude do sábio, que medita sobre os ensinamentos da lei para entrar na lógica de Deus e pôr em prática sua palavra (cf. Sir 50,27-29).

Sobre esta base bíblica podemos perceber a razão mais profunda de seu discipulado: sua íntima comunhão de vida e de destino com o Senhor. Como verdadeira discípula, “concebeu antes na fé que no ventre”, como afirmou Agostinho. Os dados da revelação nos apontam a uma unidade profunda entre Maria e seu Filho. Em virtude da sua maternidade divina, Maria acompanhou Jesus em todos os momentos da sua vida: desde o ventre até à cruz, onde é constituída mãe dos discípulos de Jesus (cf. Jo 19,25-27). Após a sua morte, acompanhou o nascimento da Igreja (At 1,14), a fim de dar continuidade à obra do seu Filho.

“Depois dos acontecimentos da Ressurreição e da Ascensão, Maria, entrando com os Apóstolos no Cenáculo enquanto esperavam o Pentecostes, estava aí presente como Mãe do Senhor glorificado. Era não só aquela que ‘avançou na peregrinação da fé’ e conservou fielmente a sua união com o Filho ‘até à Cruz’, mas também a ‘serva do Senhor’ deixada por seu Filho como mãe no seio da Igreja nascente: ‘Eis a tua mãe’. Assim começou a estabelecer-se um vínculo especial entre esta Mãe e a Igreja. Com efeito, a Igreja nascente era fruto da Cruz e da Ressurreição do seu Filho. Maria, que desde o princípio se tinha entregado sem reservas à pessoa e à obra do Filho, não podia deixar de derramar sobre a Igreja, desde os inícios, esta sua doação materna. Depois da ‘partida’ do Filho a sua maternidade permanece na Igreja, como mediação materna: intercedendo por todos os seus filhos, a Mãe coopera na obra salvífica do Filho-Redentor do mundo.” (Redemptoris Mater n. 40)

Teologicamente ela é o cumprimento e a plenitude do discipulado cristão, pois já experimenta a plenitude da redenção e da glória reservada a todos os discípulos do Senhor, podendo ajudar na inspiração e formação desses discípulos.

O Documento de Aparecida desenvolve esse tema: Maria é apresentada como a realização mais completa do cristão[6]. Observemos algumas das expressões do texto:

– Maria é a máxima realização da existência cristã pela sua vivência trinitária, pela sua fé, obediência à vontade de Deus e meditação da Palavra e das ações de Jesus (266).

– Maria é o primeiro membro da comunidade dos fieis em Cristo e colaboradora no renascimento espiritual dos discípulos (266).

– Maria é a discípula mais perfeita do Senhor (Ibid. Está citando a LG 53).

– Maria  é a “imagem acabada e fidelíssima do seguimento de Cristo” (Ibid. 270).

– Maria é  “a seguidora mais radical de Cristo” (Ibid. 270).

–  Maria é uma mulher forte e livre orientada conscientemente ao seguimento de Cristo (266).

– Maria viveu toda a peregrinação da fé como Mãe de Cristo e em seguida dos discípulos (Ibid.).

 Viver marianamente é assumir na nossa vida a categoria do discipulado no seguimento de Cristo, assumindo o compromisso de acompanhá-lo fielmente em todo o seu itinerário, atentos à sua Palavra, meditando o significado de suas ações, deixando-se guiar pelo Espírito, como membros da comunidade dos que creem em Cristo.

 

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

 

 

[1] Ele dedica a isso todo um capítulo do seu livro Mariologia Social, pp. 381-412.

[2] SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, In Mat. Hom. IV, 5; PG 57,45.

[3] Cf. Clodovis BOFF, Mariologia Social, 415.

[4] Cf. Clodovis BOFF, Mariologia Social, 422.

[5] Cf. Clodovis BOFF, Mariologia Social, 432.

[6] Seguimos aqui a Félix Javier Serrano Ursúa, “María en el Documento de Aparecida”, disponível em http://www.legiondemaria.com.mx/descargas/libros/religion/MARIA_EN_APARECIDA.pdf. Acessado em 6-10-2013.

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