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Memória de dois centenários: 1822; 1922

“Vergonha e confusão” (EE 48)

Geraldo De Mori SJ

Duas importantes datas comemorativas serão recordadas em 2022: o bicentenário da independência do Brasil, em 7 de setembro; o centenário da Semana de Arte Moderna, entre 11-18 de fevereiro. A primeira data recorda o que se convencionou chamar de “Dia da Pátria”, pois faz memória do “Grito do Ipiranga”, que marca o “evento fundador” da autonomia política do país. A segunda faz memória de um evento artístico, visto por muitos de seus intérpretes como fundamental para pensar a identidade nacional. De qualquer forma, muito se ouvirá falar dessas duas comemorações, que serão revisitadas por intelectuais de todas as áreas do saber, incluindo os/as da teologia.

Muitos poderiam se perguntar, que sentido pode ter para quem se diz discípulo e discípula de Jesus Cristo comemorar uma data de caráter nacionalista ou uma data que despertou uma série de releituras sobre o Brasil e a brasilidade? A fé cristã, enquanto oferta universal de salvação, não ultrapassa nacionalismos e identitarismos, perguntando-se sobre questões que dizem respeito ao sentido radical da existência de todos e não a aspectos que caracterizam a particularidade de cada povo ou nação? Que interesse pode ter para quem é cristão/ã no Brasil voltar-se para essas comemorações?

Provavelmente uma das afirmações teológicas mais densas do Novo Testamento é a do versículo 14 do primeiro capítulo do Evangelho de João que diz: “E o Logos se fez sarx e habitou entre nós”. A palavra “Logos”, traduzida em geral por “Verbo” ou “Palavra” e o termo “sarx”, traduzido por “carne”, evocam a solução cristã do paradoxo que perpassa a maior parte das culturas e religiões: como é possível que o divino, o imutável, o infinito, se torne humano, mutável, finito? O que é o caminho da maioria das religiões, a saber, elevar o ser humano ao que é tido como divino, perene e eterno, é completamente transformado pela afirmação do Prólogo joanino: o divino desce, assume aquilo que parece incompatível com ele, a carne, em sua debilidade e mortalidade. O caminho todo de Jesus, do Deus que ele anunciou, do reinado do qual se fez arauto e servidor, da morte ignominiosa que sofreu, do anúncio de que ressuscitou, que é o Cristo, o Senhor e o Filho de Deus, está contido nessa declaração de Jo 1,14. Dela derivou o que é conhecido como dogma da encarnação, para o qual, nada do que é humano é estranho a Deus, de que tudo é chamado a ser transfigurado Nele.

Esse caminho de transfiguração da “carne” não significa que ela seja abolida, ou que o que lhe é próprio perdeu sua densidade. Pelo contrário, todo o percurso da soteriologia (doutrina da salvação) cristã passa justamente pela carne, com tudo o que lhe é próprio, suas debilidades, contradições, ausências, pecado, buscas, realizações, sejam elas individuais sejam grupais. Nesse sentido, desde o início, seja Jesus, sejam seus seguidores, pensaram a salvação ao redor da categoria “reino ou reinado de Deus”, do qual a Igreja é servidora, sinal antecipatório. Ou seja, existe uma dimensão pessoal da salvação e da fé, pois cada um/a é chamado/a pelo nome a tornar-se discípulo/a, mas esse discipulado se dá numa comunidade de fé, que ganha os traços de cada época e lugar em que o anúncio da boa nova do reinado de Deus se faz presente. Apesar de universal, a fé sempre se traduz em cada pessoa que crê e no “nós” eclesial no qual se insere. Esse “nós” é formado por muitos rostos, línguas, povos e nações, como tão bem aparece no texto do dia de pentecostes narrado nos At 2. Em cada lugar e época esse nós é instado a testemunhar o paradoxo do “Verbo que se faz carne e habita entre nós”.

No caso dos possíveis significados teológicos das comemorações que marcarão o ano de 2022 no Brasil, à luz da teologia da encarnação, brevemente recordada acima, dois episódios recentes da violência pela qual passa o Brasil, o do assassinato do jovem congolês Moïse Mugenvi Kabagambe, no dia 24/01/2022, e o de Durval Teófilo Filho, no dia 02/02/2022, deveriam sacudir a consciência cristã do país, pois, apesar de terem participado ativamente na formação social, cultural religiosa e econômica do país, muitos homens e mulheres negros ainda têm seus direitos elementares negados. O racismo, que não vê no outro um igual, digno do mesmo respeito e dignidade, mas como alguém que é “menos”, continua sendo o “espinho na carne” de nosso país, que só poderá ser retirado e curado quando, de fato, quem se diz cristão/ã se deixa converter por Aquele que se fez o Bom Samaritano da humanidade, chamando todos e todas a se tornarem o “próximo” de quem jaz à beira do caminho. Oxalá, ao longo do ano, em que muito se refletirá sobre o “que faz o brasil, Brasil”, a fé cristã possa ir além de afirmações meramente ideológicas e ocas, tornando-se fé viva, que cria “novos céus e nova

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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