Felipe Magalhães Francisco
Para os que estamos longe, e apenas acompanhando as cenas chocantes de toda a catástrofe que tem acometido o estado do Rio Grande do Sul, a sensação é de angústia e tristeza. Quiçá o sentimento de quem vive, na própria pele, tamanho sofrimento e desamparo. Escreveu John Donne, em seu poema em prosa “Por quem os sinos dobram?”, que nenhum homem é uma ilha e que aquilo que afeta um indivíduo, afeta a humanidade inteira. Verdadeira tragédia em muitos níveis, o cuidado para com as vítimas é urgente e necessário, e temos visto verdadeira solidariedade e comunhão em todo o país, na busca por aliviar, mesmo que minimamente, a situação de milhares de pessoas.
Contudo, nem só de solidariedade estamos cercados. Há, ainda, o descaso do poder público, diante de um verdadeiro negacionismo referente às questões climáticas, tão urgentes e já sentidas efetivamente por todos nós. E, além disso, há aquela ambiguidade que nos configura a todos e a cada de um de nós, e que em algumas pessoas parece transparecer ainda mais. Em meio a tantas mobilizações, temos visto pessoas – inclusive políticos com cargos eletivos – de bastante projeção nas redes sociais, propagando as mais torpes mentiras, para atingir o Governo Federal, mas que, na prática, atrapalha sobremaneira a atuação de tantos voluntários e voluntárias, e provoca uma verdadeira desmobilização nas pessoas com potencial de ajuda. Há ideologias que provocam morte, que potencializam tragédias, que nos desumanizam! Não podemos naturalizar o horror de quem se aproveita, de toda e qualquer situação, para a promoção da morte!
Como se não bastasse a dimensão político-ideológica da coisa, temos, agregada a ela, a questão religiosa. O fundamentalismo cristão tem trazido consequências bastante nocivas que extrapolam o contexto religioso. Se, no cotidiano, já temos visto como isso tem se manifestado, piora quando vemos surfando nas ondas da tragédia, os arautos do anti-Reino. Tem viralizado, nas redes, vídeos de influencers cristãos que, movidos por uma leitura perversa da Bíblia e da fé, propagam verdadeiros absurdos teológicos. Há quem propague que o que acontece, agora, no Rio Grande Sul, é devido ao fato de aquele ser o estado com o maior número de terreiros de religiões de matrizes-africanas, por exemplo, e que isso não passa da ira divina que está a se abater, inclusive sobre cristãos e cristãs.
Um vídeo em específico, também viralizado, sinaliza o poço sem fundo no qual estamos, no que diz respeito ao absurdo religioso. A cena se dá em meio aos escombros pós-cheias. O cinegrafista amador, em meio à destruição, encontra um exemplar da Bíblia que, tal como é gravada, está aberta num texto que tem por título algo a respeito do que Deus nos ensina com o sofrimento. A primeira mensagem é clara: Deus salvou a Bíblia, tal como salvou o pente de ovos no porta-malas de um carro destruído, naquela história de terror, mas de intenção romântica, repetida muitas vezes por aí.
Em meio ao sofrimento, é bastante razoável – e nada incomum – que o ser humano levante questões importantes, inclusive sobre onde está Deus. O desamparo e a dor dão margens para essas perguntas que tanto nos atravessam, basta vermos com atenção o que nos é trazido pelo Livro de Jó. Mas foge ao bom senso e à sensibilidade e compaixão – pressupostos para a vivência do Evangelho –, o aproveitamento de uma situação de dor para uma pseudoevangelização, que só tem como resultado, aquele mesmo de uma figueira ressequida, tal como nos fala Jesus nos evangelhos. O recurso ao terror, mostra-nos a nossa história cristã, não conduz ao Reino, mas, ao contrário, estabelece uma religiosidade pautada na culpa e no medo, sustentada por uma falsa imagem de Deus, à qual não podemos mais tolerar como pretensamente digno de fé.
Enquanto um sem-número de pessoas sofre as consequências de tamanha tragédia, e tantos e tantas, compassivos, participam dessa dor por solidariedade, não podemos suportar que vozes religiosas autoritárias se aproveitem da fragilidade das pessoas, para promover uma cultura de medo e culpabilização, fundadas numa fé infértil. O Deus de Jesus, ao qual somos chamados a crer e a nos fiar, não salvaria uma Bíblia, deixando padecer ao sofrimento aqueles aos quais tanto ama. A pedagogia do Reino, demonstrada efetivamente a nós por Jesus, é outra! Se a Cruz de Jesus ainda pode nos ensinar algo, nesses nossos tempos, é também a respeito da solidariedade de Deus, chamado Pai, a nós. Deus continua nos salvando, sim, enquanto tantos e tantas atuam incansavelmente para levar socorro a quem tudo e tanto perdeu. Sejamos, pois, agentes dessa salvação!
Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia e coordenador-adjunto da Coordenação Central de Extensão Universitária da FAJE
Foto: Reprodução/Instagram/Dirceu Linden Junior