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Nascimentos

Marília Murta de Almeida

Neste tempo em que temos vivido a morte como uma constante do nosso cenário social e político, e seguindo a intuição de Albert Camus de que o tema filosófico por excelência é o suicídio, porque é preciso que pensemos sobre se a vida vale a pena, paremos um pouco nesta pergunta. Perguntar-se sobre se a vida vale a pena ser vivida é como buscar saber se se quer permanecer no lugar em que foi colocado. Nascemos e aqui estamos, neste exato tempo e lugar.
Aqui estamos, portanto, porque nascemos. Cada um de nós é, assim, evento que principiou num nascimento. Princípio sobre o qual não tivemos nenhum controle, nenhuma consciência, nenhuma possibilidade de escolha. A possibilidade do suicídio surge, então, no futuro, como antagônica ao nascimento. Fruto de escolha consciente – mesmo que marcada por motivações nem sempre claras – o suicídio é o não humano à vida em que fomos colocados. A resposta contrária, o sim, é o aceitar deste princípio misterioso que não tivemos a chance de escolher. É, no tempo da vida, aceitá-la, escolher vivê-la.

Dizer sim ao nascimento, entretanto, não se reduz à aceitação do fato primeiro da vida de cada um. João Cabral de Melo Neto, na escrita cristalina de “Morte e vida severina”, faz mais do que mostrar ao mundo a vida severina do sertão nordestino, que é severa, porque árida. Nos permite entender a nossa vida severina, a vida da consciência humana que, diante do encontro permanente com a morte, se pergunta sobre se vale a pena viver. Pergunta que é severa, porque radical, e que faz Severino, o retirante, ao mestre que encontra na chegada ao Recife:

Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?

Seu José nada responde, porque neste exato momento é interrompido por uma mulher que vem chamá-lo com a notícia de que seu filho acabara de nascer. O texto do poema então se desloca para o acompanhamento do nascimento e da recepção ao recém-nascido. O poema, que é um Auto de Natal, se desdobra em visitas, presentes, prenúncios sobre a vida futura do menino e, em belíssimos versos, em dizeres das visitas que são uma celebração da beleza da novidade representada por aquele que chega.

– Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas. (…)
− E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
− Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
− Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
− Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.

E então, recebido o menino, seu José volta para o retirante que o espera fora da casa e, dizendo-se incapaz de responder à pergunta que ele fizera, aponta, entretanto, que vida mesma tratara de mostrar a resposta:

E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

O poema, deste modo, nos oferece a resposta de que a vida, em seus nascimentos, que não cessam, tem o poder de nos conquistar para permanecer em seu leito, mesmo quando a morte parece seduzir. Porque é aberta ao novo que vem com cada nascimento, em cada nova abertura que nos permite entrever o não previsto, o ainda não pensado, o não vislumbrado, a vida nos convida, a cada dia, para nos abrirmos à fresta de seus nascimentos infindáveis.

E aqui nos lembramos de Hanna Arendt, a filósofa, que, surpreendentemente, ao refletir sobre a educação, nos diz que a essência do processo educacional é “o fato de que seres nascem para o mundo”. Educar seria, assim, um ato de amor à criança e ao mundo. É por amor ao mundo que nos dedicamos ao que nele entra – nasce – como novidade e abertura. Educar não pode, portanto, se reduzir à mera transmissão de um mundo já pronto, pois este, sem a abertura do novo, caminharia em direção à própria destruição. Ensinar e transmitir o que já está no mundo é ato que deve se realizar junto ao cuidado daquele que chega novo ao mundo, para que a sua abertura não seja eliminada. A novidade do ser que nasceu é a habitação da esperança de que não nos destruiremos.

É por aceitar o nascimento – o nosso, mas também o dos outros que se multiplica sob nossos olhos – que seguimos na vida, cultivando-a. Na esperança que mora na potência de novidade de cada ser que adentra o mundo e a vida, seguimos, mesmo que seja em face da morte. É porque vislumbro a possibilidade de que advenha o que ainda não foi previsto, que sigo aberta ao mundo e à vida.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE

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