Pe. Jaldemir Vitório SJ
O Advento vai adiantado. Em breve, chega o Natal. Entretanto, o clima natalino já chegou, há certo tempo, nos comércios e os enfeites desta época são onipresentes. Árvores de Natal, pisca-piscas, cores vermelha, verde e dourado, papai noel e outros apetrechos lembram o evento importante que está para acontecer. Todos sabem que o Natal celebra o nascimento de Jesus e Jesus veio para nos salvar. Cantamos que o “pobrezinho nasceu em Belém” e os anjos do céu anunciaram aos pastores “a chegada de Deus, de Jesus Salvador”. A maioria dos brasileiros confessam que Jesus veio para nos salvar. Ele é nosso Salvador!
Muitos não sabem bem do que se trata e se se pergunta que salvação Jesus veio trazer, dirão que veio “salvar nossas almas”. E o batismo cristão, tendo apagado o pecado original, fazendo-nos passar da condição de pagãos à de cristãos, seria o primeiro passo. Como somos pecadores, corremos sempre o risco de perder a salvação de nossas almas. Daí a necessidade de estar em dia com Deus pela prática da confissão e do pedido incessante de perdão de nossas faltas. O perigo de ser lançadas no fogo do inferno atormenta as pessoas escrupulosas, sempre temerosas de terem alguma dívida com Deus por algum pecado cometido, não devidamente confessado, pois caiu no esquecimento. A salvação da alma, então, se torna o grande objetivo de pessoas que se dizem cristãs e confessam que só Jesus, em sua infinita misericórdia, pode realizar tal anseio humano. Uma jaculatória católica, repetida quando se reza o terço, pede com insistência: “Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno; levai as almas todas para o céu; socorrei principalmente as que mais precisarem”.
A preocupação exagerada com o tema da salvação da alma coloca certos cristãos numa espécie de círculo vicioso que os impede de caminharem, olharem para frente e cultivarem a esperança. Porém, quando os anjos disseram aos pastores: “não tenham medo, pois eis que lhes anuncio uma boa notícia, que será grande alegria para todo o povo: nasceu para vocês, hoje, na cidade de Davi, um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11), anunciavam algo revolucionário, sem qualquer relação com salvação da alma. Os anjos eram portadores de um recado de Deus. Tratava-se de uma declaração que contradizia a pretensão dos imperadores romanos de serem salvadores da humanidade. A salvação jamais seria alcançada pela ação dos poderosos e dos grandes. Pelo contrário, seria levada a cabo por um menino pobrezinho, vindo das montanhas da Galileia, de uma cidade mal afamada, chamada Nazaré, de onde se pensava que jamais pudesse sair algo de bom (Jo 1,46). Sim, como disse o velho Simeão, o Menino Jesus realizaria a salvação preparada por Deus para todos, na condição de “luz para iluminar os povos e glória de Israel” (Lc 2,30-32). Afinal, a esperança anunciada pelo profeta Isaías estava se realizando (Is 42,6; 49,6; 52,10). De que esperança se tratava, enquanto acontecimento de salvação? O surgimento de uma nova humanidade!
A ideia de salvação da alma (independente do corpo) ou coisa parecida jamais esteve no horizonte do profeta bíblico do século VI a.C., tampouco de Jesus de Nazaré. Esse pensamento é estranho ao Novo Testamento, enquanto a salvação como advento de nova humanidade se faz presente, como fio que perpassa a teologia neotestamentária, do princípio ao fim. Para salvar a humanidade, Deus conta com a colaboração de cada ser humano, que abraça a causa de Jesus. Engana-se quem espera a salvação dada como recompensa, no final da vida, por eventuais méritos ou esforços pessoais, sem o engajamento que coloca a pessoa de fé no caminho da salvação, como fez e ensinou o Mestre de Nazaré.
O ministério de Jesus transcorreu todo como entrega à tarefa de salvar a humanidade, em sintonia com seu nome-missão. Como se lê, em Mt 1,21: “tu [José] lhe porás o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos seus pecados”. A palavra Jesus significa “Deus salva”, “Deus é salvação”. Do que se tratava? Pecado, no âmbito dos evangelhos, refere-se a tudo quanto está desconectado com o querer divino e seu projeto de humanidade. Aplicado ao ser humano, diz respeito ao que avilta sua dignidade, impede-o de viver plenamente, oprime-o, marginaliza-o, torna-o objeto de preconceito. O pecado tem o rosto da desumanização, seja a imposta desde fora por agentes da opressão, seja a internalizada por quem aceita viver como excluído, sem qualquer reconhecimento, à revelia de sua condição de filho e filha de Deus, de quem é “imagem e semelhança” (Gn 1,26-27).
Tudo quanto Jesus de Nazaré realizou e ensinou foi nessa direção. Quando João Batista enviou discípulos com a pergunta: “és tu aquele (salvador) que deve vir ou temos que esperar outro?”, não respondeu “sim” ou “não” (Mt 11,3). Antes, ofereceu a João Batista pistas para o discernimento e a consequente resposta: “vão dizer a João o que vocês ouvem e veem: ‘os cegos recobram a vista e os coxos andam direito, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa-Nova é anunciada aos pobres, e feliz de quem não se escandalizar por minha causa’” (Mt 11,4-6). Como pano de fundo, estava o oráculo de Is 35,4-6, referente à obra salvadora de Deus. Algo novo estava acontecendo: pela ação do Messias Jesus, a humanidade estava sendo resgatada da desumanidade. A salvação de Deus estava dando frutos!
Os ensinamentos de Jesus seguiram na mesma direção. Basta ler e refletir o Sermão da Montanha em sua versão mateana (Mt 5–7) para se dar conta da humanidade anunciada pelo Salvador Jesus, a começar pelas bem-aventuranças (Mt 5,1-12). A humanidade bem-aventurada! Ao reinterpretar a Lei de Moisés (Mt 5,21-48), propôs um estilo de vida com alto padrão ético, centrado na busca incessante pelo Reino de Deus e sua justiça (Mt 6,33). A chamada Regra de Ouro – “tudo aquilo que vocês querem que as pessoas lhes façam, façam-lhes vocês a elas; esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12) – se torna bússola para quem foi tocado pela salvação e abraçou o modo de ser e de proceder em que a “imagem e semelhança de Deus” brilha em tudo quanto faz. Libertos de nosso egoísmo – “o pecado do mundo” (Jo 1,29) – estaremos salvos e em comunhão com o Deus da vida e do amor.
Novamente celebraremos o Natal! Novamente proclamaremos que Jesus veio para nos salvar! Novamente reverenciaremos o menino pobre recém-nascido, colocado num coxo de animais, chamado em português com uma palavra bonita – “manjedoura” – para esconder a precariedade das condições em que nasceu. De maneira espontânea, me vem à mente a pergunta: e daí? Entenderemos a salvação no sentido querido por Jesus (engajamento) ou continuaremos com a velha ideia de salvação das nossas almas (individualismo)? Estaremos dispostos a arregaçar as mangas e no lançarmos na construção da humanidade salva, querida por Deus, ou continuaremos insensíveis, em face das injustiças, dos preconceitos, das desigualdades, da violência e de tantas formas de aviltamento da dignidade humana? O desrespeito aos direitos e à dignidade das mulheres e o feminicídio tocarão nossa consciência? A fome que vitima um número incalculável de seres humanos chega a nos tirar a paz? A situação catastrófica dos migrantes forçados e dos refugiados está no âmbito das nossas inquietações? A corrupção com seus efeitos macabros sobre os mais pobres nos move a denunciá-la? As guerras que se multiplicam nos parecem aberrações inaceitáveis? A crise socioambiental, a nos alertar para a sustentabilidade do planeta Terra, nossa Casa Comum, a exigir que lutemos por uma ecologia integral, entra em nossas agendas como compromisso de fé?
Tudo isso tem relação com o tema evangélico da salvação, com sua exigência de nos deixarmos libertar da acomodação, das ideologias perversas e alienadoras, dos fanatismos religiosos e políticos, da falta de discernimento no tocante aos temas de interesse para os mais pobres, enfim, de tudo quanto impede a irrupção do Reino de Deus, como pedimos insistentes no Pai-Nosso: “venha a nós o teu Reino, seja feita a tua vontade, na terra como no céu” (Mt 6,10). Cada vez que isso acontece, o Natal se renova, por se fazer sentir a presença ativa do Jesus Salvador. Esse jamais será o Natal do comércio, das exterioridades e das futilidades. Será o verdadeiro Natal, pois a humanidade querida por Deus vai tomando corpo.
Enquanto isso está longe de acontecer, aproveitemos o Natal para fazer um apurado exame de consciência, em vista de nos convertermos e obtermos lucidez para reconhecer o quanto nos falta para experimentar a salvação que o pobrezinho, nascido em Belém, veio trazer como missão recebida do Pai dos Céus!
Pe. Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
18/12/25

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